quinta-feira, 31 de maio de 2018



Da greve selvagem à autogestão generalizada [parte I]


CONTRIBUIÇÕES PARA A LUTA DOS OPERÁRIOS REVOLUCIONÁRIOS DESTINADA A SEREM DISCUTIDAS CORRIGIDAS E PRINCIPALMENTE POSTAS EM PRÁTICA SEM DEMORA

Queremos ver a verdade sob a forma de resultado prático. As páginas que se seguem dirigem-se aos operários revolucionários e a mais ninguém. Aos operários, porque fora os trabalhadores diretamente implicados no processo de produção mais ninguém detém o poder de atingir mortalmente o imperialismo mercantil. Aos operários revolucionários, porque aqueles que continuam enfeudados a partidos, sindicatos, grupúsculos, mais não fazem do que trabalhar, como miseráveis escravos, para a consolidação do sistema dominante e da sua miséria. Nos últimos dez anos *(décadas de 60 / 70 - nota do blog), greves selvagens cada vez mais resolutas, sacudiram, sem no entanto ter quebrado, o jugo comum da burguesia e dos aparelhos burocráticos. Este movimento insurrecional latente mostrou à consciência do proletariado, a empresa crescente que a mercadoria exerce na vida cotidiana, no conjunto dos comportamentos humanos, na própria natureza. E ao mesmo tempo deu provas da sua força, mostrou no espelho da sua recusa a fraqueza irremediável do sistema mercantil e do Estado. Na recusa surgem também as aproximações de um estilo de vida em violenta oposição com a sobrevivência que é hoje a miséria do mundo melhor partilhada. São reações fragmentárias, muitas vezes confusas, nascidas da vontade espontânea de acabar, de uma vez por todas, com o trabalho, o sacrifício, o espetáculo, o economismo, o tédio, os constrangimentos, as separações, mas por mais dispersas e por mais isoladas que elas sejam, lançam as bases de uma sociedade radicalmente nova: a sociedade da autogestão generalizada. A teoria revolucionária da autogestão generalizada tentou dar uma maior coerência ao conjunto das reações de recusa. Desenvolveu-se até atingir hoje o estágio que deve retornar ao movimento donde surgiu: o movimento insurrecional dos trabalhadores. O êxito ou o fracasso da autogestão generalizada dependem, de hoje em diante, daqueles que nas fábricas, nos armazéns, nos grandes estabelecimentos, nos transportes, no campo, tenham nas mãos o destino da mercadoria, daqueles que podem desviar, em proveito de todos, os bens da terra e da indústria ou continuar contra eles próprios e contra todo o proletariado a permitir que o processo mercantil alargue a sua poluição. Por toda a parte se prepara uma mudança decisiva. Basta acelerá-la, fornecendo-lhe as garantias de eficácia e coerência prática. Esperar mais seria um crime, ou pior um erro histórico, em que não chegaria toda a água do mar para apagar o sangue derramado. Para já, as condições são-nos favoráveis. As técnicas altamente desenvolvidas estão ao nosso alcance e por menos que nós queiramos virá-las contra os nossos exploradores, tudo é possível e nada é utópico. Nunca a sobrevivência reinou tanto nem suscitou tanta revolta. Nunca o Estado dispôs tão bem da força da mentira nem foi tão vulnerável à verdade cotidiana. Nunca o sistema mercantil levou tão longe o condicionamento dos homens ao dinheiro, à aparência e ao poder, nem viu dirigir-se, para o destruir, tanta raiva refletida, tanta criatividade e tanta paixão. A partir de agora, se os operários revolucionários não se decidirem a tratar eles próprios dos seus problemas e a levar até ao fim as transformações sociais que as greves selvagens, as ocupações e os desvios das fábricas anunciam, aqueles que não têm os meios para a realizar farão da autogestão generalizada mais uma ilusão no céu das idéias e virão feitos messias descidos à terra pregar a organização do proletariado, na melhor tradição dos Lenin, Trotsky, Mao, Garcia Oliver, Castro, Guevara e outros burocratas. Enfim, há muito já que a revolução está às portas das nossas cidades de tédio, das nossas cidades poluídas, dos nossos palácios de estuque. Já basta de suportar o trabalho, os chefes, os tempos mortos, o sofrimento, a humilhação, a mentira, a polícia, os patrões, os governos, o Estado. A impaciência, muito tempo contida, leva à violência cega, ao terrorismo, à autodestruição; o certo é que temos mais que fazer para nos salvarmos de uma sociedade que se suicida do que brincar de kamikases contra um regimento de policiais, um punhado de bispos, uma pilha de patrões, de generais, de homens de Estado, mas o escoar das horas sem vida é mais terrível que a morte. A nossa luta final já durou muito. Precisamos agora da vitória. Os textos aqui propostos tentam responder aos problemas que levanta a passagem de uma sociedade de classes a uma sociedade de autogestão generalizada. A primeira parte começa pelas recusas mais vulgares e insiste no seu significado, pois é preciso que conheçamos bem aquilo que nos é familiar se quisermos que tudo que vem da vida cotidiana, a ela volte, enriquecendo-a permanentemente. A segunda enumera algumas medidas a tomar, consoante a ação operária se limita à sabotagem e ao desvio, se estende à greve selvagem ou atinge a ocupação dos locais de trabalho. A terceira dá um modelo do que poderá ser a autogestão generalizada e uma sociedade fundada na satisfação das vontades e paixões individuais. Tais notas estão necessariamente impregnadas de fraquezas, de hesitações, quem sabe de erros, mas o seu radicalismo é indiscutível. Merecem ser discutidas, mas não por aqueles que só lhes podem opôr críticas abstratas, não pela canalha intelectual. O seu único interesse é o de serem debatidos no trabalho, nas oficinas, quando a raiva cresce. Então, experimentadas, corrigidas, difundidas por todos os meios que possuem os patrões, os quadros, os sindicalistas (telex, fotocópia, rádio, instalações sonoras, tipografias) elas permitirão verdadeiramente dar toda a coesão ao ímpeto insurrecional, evitarão as esperas e lentidões não raro funestas nos primeiros momentos de uma revolução, lançarão ao rosto dos estatistas essa “razão na história” que temem sobretudo quando ela se exprime pelo proletariado em armas: “Eis a sociedade que vamos construir. Eis porque nós queremos destruir-vos”.

CAPÍTULO I 

 A SOCIEDADE DE SOBREVIVÊNCIA

1. Já sentiu, pelo menos uma vez, o desejo de chegar tarde ao trabalho ou de sair mais cedo?

Nesse caso, compreendeu que: 

 a) O tempo de trabalho conta a dobrar porque é tempo perdido duas vezes: – como tempo que seria mais agradável empregar no amor, no sonho, nos prazeres, nas paixões, como tempo do qual se disporia livremente. – como tempo de desgaste físico e nervoso.

 b) O tempo de trabalho absorve a maior parte da vida porque determina também o tempo dito “livre”, o tempo de descanso, de deslocações, de refeições, de distração. Atinge assim o conjunto da vida cotidiana de cada um, e tende a reduzi-la a uma sucessão de instantes e de lugares, que têm em comum a mesma repetição vazia, a mesma ausência crescente de vida verdadeira.

 c) O tempo de trabalho forçado é uma mercadoria. Onde quer que haja mercadoria, há trabalho forçado e quase todas as atividades se identificam, pouco a pouco, com o trabalho forçado: produzimos, consumimos, comemos, dormimos para um patrão, para um chefe, para o Estado, para o sistema da mercadoria generalizada.

 d) Trabalhar mais é viver menos. De fato, você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade que assegura a cada um o direito de dispor ele próprio do tempo e do espaço: de construir cada dia a sua vida como deseja.

 2. Já sentiu, pelo menos uma vez, o desejo de não trabalhar mais (sem fazer os outros trabalhar por si)? 

Nesse caso, compreendeu que: 

a) mesmo que o trabalho forçado só produzisse bens úteis, como roupas, alimentos, técnica, conforto… ele não deixaria de ser igualmente opressivo e desumano, porque: – o trabalhador permaneceria privado do seu produto e submetido às mesmas leis da corrida ao lucro e ao poder. – o trabalhador continuaria a passar no trabalho dez vezes mais tempo do que seria necessário, numa organização atraente da criatividade, para colocar à disposição de todos um número de bens cem vezes maior.

b) No sistema mercantil que predomina o trabalho forçado não tem por fim, como se quer fazer crer, produzir bens úteis e agradáveis para todos, mas sim produzir mercadorias. Independentemente do que elas possam conter de útil, inútil ou prejudicial, as mercadorias não têm outra função senão a de manter o lucro e o poder da classe dominante. Num tal sistema toda a gente trabalha para nada e disso tem cada vez mais consciência.

c) Acumulando e renovando as mercadorias, o trabalho forçado aumenta o poder dos patrões, dos burocratas, dos chefes, dos ideólogos. Torna-se assim um objeto de desprezo para os trabalhadores. Toda a paralisação de trabalho é um modo de nos tornarmos nós próprios e um desafio a todos aqueles que disso nos impedem.

d) O trabalho forçado produz apenas mercadorias. Toda a mercadoria é inseparável da mentira que representa. O trabalho forçado produz pois mentiras, produz um mundo de representações ilusórias, um mundo invertido onde a imagem ocupa o lugar da realidade. Nesse sistema espetacular e mercantil, o trabalho forçado produz sobre si próprio duas ilusões importantes: – a primeira é que o trabalho é útil e necessário e que é do interesse de todos trabalhar. – a segunda ilusão é a de fazer crer que os trabalhadores são incapazes de se emancipar do trabalho e do salariado e que não podem edificar uma sociedade radicalmente nova, fundada na criação coletiva e atraente, e na autogestão generalizada.

De fato você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade em que o fim do trabalho forçado dá lugar a uma criatividade colectiva, regulada pelos desejos de cada um e à distribuição gratuita dos bens necessários à construção da vida cotidiana. O fim do trabalho forçado significa o fim do sistema onde reinam o lucro, o poder hierarquizado, a mentira generalizada. Significa o fim do sistema espetacular-mercantil e anuncia uma mudança global de todas as preocupações. A procura da harmonia das paixões, enfim libertas e reconhecidas, sucederá à corrida ao dinheiro e às migalhas do poder. (Ver III 59 a 74)

3. Já alguma vez sentiu, fora do local de trabalho, a mesma tristeza e a mesma prostração que sente na fábrica?  

Nesse caso compreendeu que:

 a) A fábrica está em toda a parte. Ela é a manhã, o comboio, o carro, a paisagem destruída, a máquina, os chefes, a casa, os jornais, a família, o sindicato, a rua, as compras, as imagens, o vencimento, a televisão, a linguagem, os feriados, a escola, a lida da casa, o tédio, a prisão, o hospital, a noite. É o tempo e o espaço da sobrevivência quotidiana. É a habituação aos gestos repetidos, às paixões recalcadas e vividas por procuração, por imagens interpostas.

 b) Qualquer actividade reduzida à sobrevivência é um trabalho forçado; todo o trabalho forçado transforma o produto e o produtor em objecto de sobrevivência, em mercadoria.

 c) A recusa da fábrica universal está em toda a parte pois a sabotagem e o desvio por toda a parte se propagam, entre os proletários e permite-lhes ainda sentir prazer em vaguear, em fazer amor, em encontrar-se, em falar-se, em beber, em comer, em sonhar, em preparar a revolução da vida cotidiana, aproveitando entretanto todo o prazer de não estarem completamente alienados.

De facto, você já luta, conscientemente ou não, por uma sociedade onde as paixões sejam tudo, o tédio e o trabalho nada. Sobreviver, impediu-nos até hoje de viver.

Trata-se agora de virar o mundo ao contrário; de nos apoiarmos nos momentos autênticos, condenados à clandestinidade e à falsificação, no sistema espectacular-mercantil: os momentos de verdadeira felicidade, de prazer sem reservas, de paixão. (Ver III, 47 a 58).

 4. Já alguma vez teve a intenção de se servir da máquina com que trabalha, para fabricar um objecto, do qual fará uso fora da fábrica? 

Nesse caso, compreendeu que: 

a) A máquina produz efeitos opostos conforme é utilizada em proveito dum patrão e do Estado, ou é utilizada pelo trabalhador em seu proveito imediato.

b) O princípio do desvio consiste em virar contra o inimigo as técnicas e as armas que ele emprega contra nós.

c) O contrário do trabalho forçado é a criação individual e colectiva. Os proletários aspiram criar as suas próprias condições de vida, para deixarem de ser proletários. À parte alguns raros momentos revolucionários, esta criatividade tem permanecido até o presente, clandestina (utilização de máquinas “biscatos”, experimentação, procura de paixões ou sensações novas).

d) A paixão da criatividade quer ser tudo. Como destruição do sistema mercantil e como construção da vida cotidiana ela é a paixão que contém todas as outras. O desvio das técnicas, em proveito da criação feita por todos é, portanto, a única maneira de acabar com o trabalho e com as separações que a todos os níveis ele reflete (manual-intelectual; trabalho-lazer; teoria-prática; indivíduo-sociedade; ser-parecer…).

 De facto, você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade em que os depósitos, os centros de distribuição, as fábricas, as técnicas pertencerão às assembleias de greve e depois, ao conjunto dos indivíduos agrupados em assembleias de autogestão. (Ver III, 1 a 20).

5. Costuma sabotar voluntariamente peças na cadeia de montagem, ou já em estoque? 

Se sim, compreendeu que:

a) A luta dos operários contra a mercadoria é o verdadeiro ponto de partida da revolução. Ela mostra claramente, como o prazer de sermos nós próprios e de usufruirmos de tudo, passa pelo prazer de destruir de um modo total, aquilo que nos destrói dia a dia.

b) A mercadoria é o coração de um mundo sem coração, é a força e a fraqueza do poder hierarquizado, do Estado e sua burocracia. A liberdade e felicidade individuais, de todos, exigem não apenas que ataquemos mas que a destruamos definitiva e totalmente (por exemplo, a simples sabotagem das mercadorias não é suficiente, pois, os desgaste prematuro dos produtos lançados no mercado, vai ajudar, ao fim de contas, o capitalismo privado e o capitalismo de Estado – URSS, Cuba, China… – a acelerar a renovação dos objetos consumidos e a renovação das ideologias; melhora assim, a acumulação da mercadoria e das atitudes e representações sociais que ela impõe).

c) Na medida em que a sabotagem é uma maneira de fazer o trabalho depressa e mal tem o mérito de poupar energia e de encorajar a não mais trabalhar.

d) Ainda que insuficiente, a sabotagem dos produtos acabados é uma reação sã. Traduz o desprezo do operário pela mercadoria e pelo papel de operário, ou seja, pela atitude ligada às ideias de trabalho necessário, de trabalho bem feito, e outras parvoíces que a sociedade dominante lhe impõe.

e) A recusa do papel de operário é paralela à recusa do trabalho e da mercadoria. Tem todas as condições para se alargar à recusa de todos os papéis, de todos os comportamentos, que fazem agir cada um, não em função dos seus desejos e paixões, mas em função de imagens, boas ou más, que lhe são impostas e que constituem a mentira pela qual a mercadoria dá o seu espetáculo. Faça as contas ao que resta de si, quando acumula num só dia, papéis como o de pai de família, esposo, operário, automobilista, militante, espectador, consumidor…

 De fato, você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade onde as separações desaparecem à medida que o trabalho desaparece também; onde cada um pode ser, enfim totalmente verdadeiro, porque deixa de produzir a mercadoria e a sua mentira (o mundo invertido onde os reflexos são mais importantes que o autêntico). (Ver III, 69, 90).

6. Ao sabotar a produção, sente o desejo de se divertir sabotando as redes repressivas (aparelho burocrático, polícias, quadros de chefia, informações, urbanismo)?

Nesse caso, compreendeu que:

a) O sistema mercantil sabe muito bem recuperar, em seu proveito, a sabotagem parcial da mercadoria. A sabotagem limitada aos produtos, não destrói o sistema mercantil porque a má qualidade obtida apenas vai aumentar o desgaste prematuro, já previsto pelos patrões para provocar a renovação acelerada dos objetos consumidos. E mais, a sabotagem como ato terrorista, renova o estoque de imagens do espetáculo fornecendo-lhe as indispensáveis imagens negativas (o odioso sabotador, o terrível incendiário de armazéns etc.).

b) O que permite a transformação dum produto em mercadoria e a extensão do processo mercantil a todas as atividades sociais, é o trabalho forçado e as forças que o protegem e mantém: o Estado, os sindicatos, os partidos, a burocracia, o espetáculo, ou seja, o conjunto das representações ao serviço da mercadoria que são também mercadorias (ideologias, cultura, papéis, linguagem dominante).

c) A destruição da mercadoria pela liquidação do trabalho forçado é portanto inseparável da liquidação do Estado, da hierarquia, do constrangimento, da incitação ao sacrifício, da mentira e dos que organizam o sistema da mercadoria generalizada. Se a sabotagem não atacar, ao mesmo tempo a produção e o que a protege, ela continua a ser parcial e inoperante, transforma-se nesse terrorismo que é o desespero da revolução e a fatalidade autodestrutiva da sociedade da sobrevivência.

d) Tudo o que não pode ser desviado em proveito dos revolucionários deve ser destruído pela sabotagem. Tudo o que entrave o desvio deve ser destruído. De fato, você luta já conscientemente ou não, por uma sociedade de onde o Estado e qualquer forma de poder hierarquizado terão desaparecido, dando lugar a assembleias de autogestão que dispõe das forças produtivas e dos bens a distribuir gratuitamente, pondo fim a qualquer perigo de reconstrução do sistema mercantil.

7. Já alguma vez experimentou o desejo de não mais ler jornais e de partir o seu televisor?

Nesse caso, compreendeu que:

a) Os jornais, a rádio, a televisão são os veículos mais grosseiros da mentira. Não só nos afastam a todos dos verdadeiros problemas – do “como viver melhor” que se põe concretamente todos os dias – como também levam cada indivíduo em particular a identificar-se com imagens já feitas, a colocar-se abstratamente no lugar dum Chefe de Estado, de uma vedete, de um assassino, de uma vítima, em suma, a reagir como se fosse um outro. As imagens que nos dominam são os triunfo daquilo que nós não somos e do que nos afasta de nós próprios; do que nos transforma em objetos a classificar, etiquetar, hierarquizar, segundo o sistema da mercadoria universalizada.

b) Existe uma linguagem ao serviço do poder hierarquizado. Não se encontra apenas na informação, na publicidade, nas ideias feitas, nos hábitos, nos gestos condicionados, mas também em toda a linguagem que não prepara a revolução da vida cotidiana, em toda a linguagem que não está ao serviço de nossos prazeres.
c) O sistema mercantil impõe as suas representações, as suas imagens, o seu sentido, a sua linguagem, de cada vez que trabalha para ele, ou seja, a maior parte do tempo. Este conjunto de ideias, de imagens, de identificações, de comportamentos condicionados pela necessidade de acumulação e renovação da mercadoria, forma o ESPETÁCULO onde cada um representa aquilo que não é. Daí que o papel seja uma mentira viva e a sobrevivência um mal-estar permanente.

d) O espetáculo (ideologias, cultura, arte, papéis, imagens, representações, palavras-mercadorias) é o conjunto de comportamentos sociais, através dos quais, os homens entram no sistema mercantil, nele participam contra si próprios, tornando-se objetos de sobrevivência – mercadorias – renunciando ao prazer de viverem realmente para si e de construírem livremente a sua vida cotidiana.

e) Sobrevivemos num conjunto de imagens às quais somos levados a identificar-nos. Agimos cada vez menos por nós próprios e cada vez mais em função de abstrações que nos dirigem, segundo as leis do sistema (lucro e poder).

f) Os papéis ou as ideologias podem ser favoráveis ou hostis ao sistema dominante, o que é pouco importante, uma vez que continuam no espetáculo, no sistema dominante. Só o que destrói a mercadoria e o seu espetáculo é revolucionário.

De fato, você já está saturado da mentira organizada, da realidade invertida, dos fingimentos que macaqueiam a vida verdadeira e acabam por empobrecê-lo. Você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade em que o direito de comunicação real, pertença a todos, onde cada um possa dar a conhecer o que lhe diz respeito, graças à livre disposição das técnicas (tipográficas, telecomunicações) onde a construção de uma vida apaixonante, liquida a necessidade de ter um papel e de dar mais valor à aparência que ao vivido autêntico. (Ver III, 40 a 46).

8. Acontece-lhe sentir que, à parte raros momentos, a sua pessoa não lhe pertence e se torna estranho a si mesmo?

Nesse caso, compreendeu que:

a) Através de cada um dos nossos gestos – mecanizados, repetidos, separados uns dos outros – o tempo desfaz-se em migalhas e, pedaço a pedaço, arranca-nos de nós próprios. E, esses tempos mortos reproduzem-se e acumulam-se no decorrer do trabalho e fazem-nos trabalhar para a reprodução e acumulação das mercadorias.

b) O envelhecimento hoje não é mais do que um crescendo de tempos mortos, do tempo em que a vida se perde. Daí que já não haja jovens nem velhos mas indivíduos mais ou menos vivos. Os nossos inimigos são aqueles que crêem e fazem crer que a mudança global é impossível, são os mortos que nos governam e os mortos que se deixam governar.

c) Trabalhamos, comemos, lemos, dormimos, consumimos, temos os nossos lazeres, absorvemos a cultura, recebemos cuidados, e assim sobrevivemos, como plantas de estufa. Sobrevivemos contra tudo o que nos incita a viver. Sobrevivemos por um sistema totalitário e desumano – uma religião de coisas e imagens – que nos recupera quase em todo o lado e quase sempre para aumentar os lucros e as migalhas do poder da classe burocrático-burguesa.

d) Seríamos simplesmente aquilo que faz sobreviver o sistema mercantil, se por vezes não nos tornássemos, de repente, nós mesmos, se não fossemos arrebatados pelo desejo de viver apaixonadamente. Em lugar de serem vividos por procuração, por imagens interpostas, os momentos autenticamente vividos e o prazer sem reserva, outros tantos golpes dirigidos ao sistema espetacular-mercantil. Basta dar-lhes mais coerência para os espalhar, multiplicar e reforçar.

e) Criando apaixonadamente as condições favoráveis ao desenvolvimento das paixões, nós queremos destruir aquilo que nos destrói. A revolução é a paixão que permite todas as outras. Paixão sem revolução não é mais do que ruína do prazer.

De fato, você já está farto de arrastar tempos mortos em constrangimentos. E luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade cuja base já não será a corrida ao lucro e ao poder mas a procura e harmonização das paixões a viver. (Ver III, 75 a 92).

9. Já alguma vez experimentou o desejo de incendiar uma fábrica de distribuição (supermercado, grande estabelecimento, armazém)?

Nesse caso, compreendeu que:

a) A verdadeira poluição é a poluição da mercadoria unversalizada, extensa a todos os aspectos da vida. Cada mercadoria exposta num supermercado é o elogio cínico da opressão salarial, da mentira que faz vender, da troca, do chefe e do policial que servem para as proteger.

b) A exposição das mercadorias é um momento da sobrevivência e a glorificação da sua miséria: elogio da vida perdida em horas de trabalho forçado, sacrifícios consentidos para comprar merdas (alimentos falsificados, objetos sem uso possível, carros-túmulos, jaulas de habitação, objetos concebidos para durar pouco e serem comprados de novo); recalcamentos; prazeres-angústia; imagens irrisórias propostas em troca de uma ausência de vida verdadeira e compradas por compensação.

c) Incendiar um grande armazém não passa de um ato terrorista. Com efeito, uma vez que a mercadoria é concebida para se auto-destruir e ser substituída, o incêndio não destrói o sistema mercantil mas antes participa nele, só que com demasiada brutalidade. Ora, não se trata de deixarmos que a mercadoria nos destrua ao destruir-se a ela mesma. É preciso destruí-la completamente para construir a autogestão generalizada.

De fato, você já está farto dos cenários do tédio e do “voyeurisme”; de um mundo onde aquilo que se vê impede de viver e onde o que impede de viver se dá a ver como caricatura abstrata de vida. E luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade em que o verdadeiro fim da mercadoria está na livre utilização dos produtos criados, pelo fim do trabalho forçado. Contra o trabalho que impede a abundância e dela apenas produz o seu reflexo ilusório, nós queremos a abundância que convida à criatividade e às paixões. (Ver III, 47 a 58).

10. Já alguma vez experimentou o prazer de trazer da fábrica ou de uma loja, este ou aquele objeto, pela simples razão de ter participado na sua produção ou pela razão, ainda melhor, de ter necessidade dele ou de o desejar?

Nesse caso, compreendeu que:

a) Não se trata de roubar, mas sim de recuperar um bem que é seu. Os únicos ladrões são os servidores do sistema mercantil e os lacaios do Estado: patrões, burocratas, policiais, magistrados, sociólogos, urbanistas, ideólogos. É porque nos demoramos a condená-los, na prática, ao desaparecimento que eles ainda ousam condenar legalmente um operário que tira de uma fábrica ou de uma loja aquilo que necessita.

b) Um produto industrial ou agrícola só tem interesse se servir livremente as satisfações de cada um. É um crime contra o direito ao prazer de dispor das coisas, transformá-lo em mercadoria, em elemento de troca e de espetáculo.

c) A condição necessária para que um objeto subtraído ao processo mercantil a ele não retorne é, evidentemente, que ele não seja nem trocado por algum dinheiro ou poder (roubar para fazer de chefe, para representar um papel é ainda reproduzir o processo espetacular-mercantil, quer ele seja ou não tolerado pelo Estado).

d) A condição para que um objeto ou uma atitude não sejam recuperados pelo sistema mercantil é a de os empregar contra ele, de os virar contra a própria mercadoria apanhada no seu movimento (o movimento que transforma um produto em mercadoria vai do objeto concreto a sua representação abstrata e a sua representação abstrata é, por sua vez, concretizada em diversos condicionamentos das atitudes sociais – os papéis).

e) A destruição completa da mercadoria não se pode fazer senão pelo desvio coletivo dos bens industriais e agrícolas em proveito da autogestão generalizada e pela autogestão generalizada.

De fato, você já está farto de se submeter ao dinheiro e aos papéis para obter em troca os bens necessários a uma aparência de vida. Luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade em que a gratuidade e a doação sejam as únicas relações sociais possíveis. (Ver III, 54, 55, 56).

11. Já alguma vez participou na pilhagem de uma fábrica de distribuição (supermercado, grande armazém)? 

Nesse caso, compreendeu que:

a) A recuperação a título individual dos bens roubados pelo Estado e pelo patronato, volta novamente ao processo mercantil se não se transformar numa ação coletiva e numa destruição total do sistema (por mais simpático que o gesto seja, não basta recuperar os bens, é preciso recuperar também o espaço e o tempo roubados).

b) A pilhagem é uma reação normal à provocação mercantil (vejam-se as inscrições “oferta gratuita”, “livre serviço” etc.). Tal como o incêndio dito criminoso, ela não é senão uma metamorfose do sistema. Se o sistema mercantil se adapta já a uma certa percentagem de roubos nos grandes armazéns e nas fábricas, facilmente se adaptará a uma certa percentagem de saques e calculará a sua auto-regulação em função destes “acidentes” previsíveis e programáveis. O fato é de tal modo evidente que um representante da lei, o juiz Kinard, juiz único no tribunal correcional de Liège, se recusou, em 12 de setembro de 1973, a sancionar penalmente os roubos de mercadorias expostas, alegando os notáveis considerandos que se seguem: “Os roubos de mercadorias expostas nas lojas organizadas em livre serviço, são a consequência inelutável, e aliás já prevista nos encargos de exploração deste gênero de comércio, em que o sensacionalismo publicitário e as tentações várias sendo cientificamente ostentadas constituem para os consumidores uma provocação a comprar muito além, quer de sua necessidade, quer de seu poder de compra. Os roubos de mercadorias expostas não denotam, geralmente, no seu principal autor uma mentalidade ou uma atitude que mereça ser penalmente sancionada”. O que sem dúvida fará jurisprudência.

c) Se, na pilhagem, cada um se apropriar dos bens como se estes se tornassem propriedade privada, a mercadoria reaparece e o sistema renova-se (nesse caso, mais vale destruir tudo: assegura-se a desaparição de 90% das merdas).

d) Sem a consciência da autogestão generalizada a pilhagem é, quando muito, um mode de distribuição incoerente. É um ato separado das condições revolucionárias, em que a coletividade que cria os bens os distribui diretamente aos seus membros. Logo a partir daí ela arrisca-se, levando à escassez e à falta de produtos úteis, a engendrar a confusão nos espíritos e a provocar um retorno aos mecanismos de distribuição mercantil. De fato, você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade em que a produção não assalariada e a distribuição gratuita dos bens se tornam possíveis pela supressão da propriedade e pelo agrupamento dos produtores em assembleias de autogestão. É ai que a vontade de cada um se manifesta pela voz dos delegados controlados e revogáveis a todo o momento. Estes delegados fazem o balanço dos bens disponíveis e harmonizam as ofertas de criação produtiva com as procuras individuais de maneira que a abundância se instale de modo progressivo e irresistível. (Ver III, 1 a 10).

12. Apetece-lhe, à primeira oportunidade, partir as ventas do seu chefe ou a quem quer que o trate como subordinado? 

Se sim, compreendeu que: 

a) Tornar-se um chefe é deixar de ser humano. O chefe é o embalador e a embalagem da mercadoria. Fora do sistema mercantil deixa de ter utilidade. Tal como as mercadorias, ele reproduz-se e acumula-se; mede-se em quantidade de poder, de alto a baixo da hierarquia. E o seu poder é sustentado pelo poder que o espetáculo exerce, como vontade econômica e representação social, sobre a maior parte da vida cotidiana. 

b) Quanto mais o poder se fragmenta e se estende por toda a parte, mais ele se reforça e se enfraquece. Quanto mais chefes existirem mais impotentes eles são. Quanto mais impotentes eles forem mais a máquina burocrática funciona no vácuo, mais ela impõe a todos a aparência da sua onipotência e mais as pessoas aprendem a recusar globalmente a servidão.

c) Onde quer que haja autoridade, há sacrifício e vice-versa. O chefe e o militante são a mesma pedra onde a revolução tropeça, o ponto em que ela se inverte e se torna o contrário da emancipação.

d) O ato terrorista que consiste em liquidar com uma só bala burocrata e patrão nada muda as estruturas e mais não faz do que acelerar a renovação dos quadros dirigentes. Para liquidar o Estado e as organizações hierarquizadas que o reproduzem mais tarde ou mais cedo é preciso aniquilar o sistema mercantil.

e) O Estado é o regulador, o centro nervoso e a rede protetora da mercadoria. Esforça-se por equilibrar as contradições econômicas, por ordenar politicamente o trabalho social em direitos e deveres do cidadão, por organizar a enganação ideológica e os mecanismos repressivos que transformam o indivíduo num servidor do sistema mercantil.

f) O conluio Estado-mercadoria pode avaliar-se à primeira vista pela intervenção rápida da polícia (e das milícias patronais e sindicais) quando uma greve selvagem se desencadeia. De fato você luta já por uma sociedade sem constrangimentos nem sacrifícios, onde cada um é o seu único senhor e vive em tais condições que não terá de tratar nenhum outro homem como escravo; uma sociedade sem classes, em que o poder delegado aos conselhos é exercido sob vigilância permanente e pela vontade de cada indivíduo em particular. (Ver III, 28, 29).

13. Regozija-se com a ideia de um dia próximo em que poderá tratar como seres humanos os policiais que não tenha sido necessário abater imediatamente? 

Nesse caso, compreendeu que: 

a) O policial é o cão de guarda do sistema mercantil. Onde quer que a ilusão da mercadoria não baste para impor a ordem, ele surge coberto pela classe ou pela casta burocrática dominantes.


b) Sem falar do desprezo que tem por si próprio, o policial é desprezado como assassino assalariado, como lacaio de todos os regimes, como escravo profissional, como mercadoria de proteção, como cláusula repressiva do contrato econômico-social, imposto pelo Estado aos cidadãos.

c) Onde quer que haja Estado, há policiais. Onde quer que haja policiais – a começar pelo serviço de ordem das manifestações contestatórias – há Estado ou esboços.

d) Qualquer hierarquia é policial.

e) Abater um policial é um passatempo para candidatos ao suicídio. Tal resolução apenas deve ser tomada na autodefesa, no movimento geral de liquidação de todo e qualquer poder hierárquico.

f) A felicidade só é possível quando o Estado deixar de existir; quando nenhuma condição hierarquizante prepare o seu regresso. De fato, você já está saturado do controle e do constrangimento, do policial que lhe faz lembrar que você não é nada e o Estado é tudo, do sistema que cria as condições do crime ilegal e legaliza o crime dos magistrados que o reprimem. Luta já por uma harmonização dos interesses passionais (pelo desaparecimento dos interesses econômicos e espetaculares) e pela organização das relações entre os indivíduos, pela abundância de encontros e a livre difusão dos desejos. (Ver III, 11 a 18).


14. Já alguma vez experimentou o desejo de atirar a sua folha de vencimento à cabeça do caixa? 

Nesse caso, compreendeu que: 

a) O assalariamento reduz o indivíduo a uma quantia. Do ponto de vista capitalista, o assalariado não é um homem mas um índice no custo de produção e um dado valor de compra no consumo.

b) O assalariamento é a base da exploração global, tão claramente como o trabalho alienado e a produção da mercadoria são a base do sistema espetacular-mercantil. Melhorá-lo é aumentar a exploração do proletariado pela classe burocrático-burguesa. A única hipótese é suprimi-lo.

c) O assalariamento exige o sacrifício de mais de oito horas de vida por oito horas de trabalho, trocadas por uma soma em dinheiro que não cobre senão uma pequena parte do trabalho prestado, sendo o que resta, lucro para o patrão. E este salário deve ser por sua vez trocado por produtos poluídos e falsificados, equipamentos domésticos pagos dez vezes o seu preço real, supérfluos, alienantes (o carro que permite trabalhar, consumir, poluir, destruir a paisagem, ganhar tempo vazio e morrer) sem contar com os impostos pagos ao Estado, aos especialistas, aos mafiosos sindicalistas…

d) É falso que as reivindicações de salário podem pôr em perigo o capitalismo privado ou de Estado: o patronato não concede aos operários senão o aumento necessário aos sindicatos, para demonstrar que estes ainda servem para alguma coisa; e os sindicatos não exigem do patronato (que aliás dispõe do aumento dos preços) senão somas que não coloquem em perigo um sistema em que eles são os segundos a lucrar.

De fato, você já está farto de viver a maior parte do tempo em função do dinheiro, de ser reduzido à ditadura econômica, de sobreviver sem ter tempo para viver apaixonadamente.

Você luta já, conscientemente ou não, por uma distribuição dos bens úteis que não deva nada à corrida ao lucro e que responda às necessidades reais das pessoas. (Ver III, 31, 34, 35, 40, 51, 52).

15. Costuma escarrar quando passa um padre? Tem ganas de incendiar uma igreja, um templo, uma mesquita, uma sinagoga? 

Se sim, compreendeu que: 

a) A religião é o ópio das criaturas oprimidas.

b) Qualquer religião apela ao sacrifício, tudo o que apela ao sacrifício é religioso (os militantes por exemplo).
c) A religião é o modelo universal da mentira, a inversão do real em proveito de um mundo mítico, que será, uma vez dessacralizado, o espetáculo da vida cotidiana.

d) O sistema mercantil dessacraliza, destrói o espírito religioso e ridiculariza os seus “supérfluos” (papa, corão, bíblia, cricifixo…) mas, ao mesmo tempo, conserva-o como uma incitação permanente a preferir-se a aparência ao vivido, a submissão à liberdade, o sistema dominante às paixões. O espetáculo é a nova religião e a cultura é o seu espírito crítico.

e) Os símbolos religiosos testemunham a permanência do desprezo que os regimes hierárquicos do todos os tempos inflingiram aos homens. Para dar apenas um exemplo, o Cristo… Na primeira categoria das sucursais de produtos divinos as igrejas cristãs adotaram, sob a pressão do processo mercantil, uma exibição contorcionista que só terá fim com o desaparecimento completo da sua etiqueta publicitária, o camaleão Jesus. Filho de deus, filho da puta, filho da virgem, fazedor de milagres e de pãezinhos, pederasta e puritano, militante e membro do serviço de ordem, acusador e acusado, homem para todo o serviço e astronauta, não há papel que não esteja na alçada deste espantoso fantoche. Apareceu como comerciante do sofrimento, como cobrador de graças, como republicano, como socialista, como fascista, como anti-fascista, como stalinista, como barbudo, como partidário do Reich, como anarquista. Esteve em todas as tabuletas, em todas as bandeiras, em todo o desprezo de si próprio, dos dois lados do cacete, na maior parte das execuções capitais, onde empunhou tanto a mão do carrasco como a do condenado. O seu lugar é nas esquadras, nas prisões, nas escolas, nos bordéis, nos quartéis, nos grandes estabelecimentos, nas zonas de guerrilha. Serviu de pingente, de sinal rodoviário, de espantalho, para manter os mortos em paz e os vivos de joelhos, de tortura e de regime para emagrecer, servirá de excitador quando os comerciantes de prepúcios sagrados tiverem reabilitado comercialmente o pecado. Pobre Maomé, pobre Buda, pobre Confúcio, tristes representantes de firmas concorrentes e sem imaginação nem dinamismo. Jesus leva vantagem em todas as frentes. Jesus Cristo superdroga e superstar: todas as imagens do vendido a deus em promoção de venda de deus. A pele dos colhões de Deus-Pai inexistente pregada em triângulo e promovida a amuleto é o símbolo mais bem acabado do homem como mercadoria universal. De fato, você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade onde, a organização do sofrimento e das suas compensações terá desaparecido, onde a ideia de deus deixará de ter sentido, porquanto cada um será o seu único senhor, onde sobretudo os problemas relativos ao vivido autêntico e às paixões a satisfazer se sobreporão definitivamente aos problemas da vida invertida e das paixões a recalcar. (Ver III, 75 a 92).

16. Desgosta-o a destruição sistemática dos campos e da paisagem urbana? 

Nesse caso, compreende que: 

a) O urbanismo é a apropriação do território pelo sistema mercantil e seus policiais. (…)

18. Acontece-lhe sentir-se mal na sua pele de cada vez que as circunstâncias dominantes o obrigam a desempenhar um papel? 

Nesse caso, compreendeu que: 

 a) O prazer total só existe quando cada um se torna aquilo que é, quando se realiza como homem com desejos e paixões. Pelo contrário, as relações sociais organizadas como espetáculo da vida cotidiana impõem a todos que se conformem com uma série de aparências e de comportamentos inautênticos: incitam à identificação a imagens e a papéis.

b) Os papéis são a miséria aparentemente vivida que compensa a miséria vivida realmente. Os papéis (de chefe, de subordinado, de pai ou mãe de família, de criança submissa ou revoltada, de contestador, de conformista, de ideólogo, de sedutor, de homem de prestígio, de teórico, de ativista, de pedante culto etc…) obedecem todos à lei da acumulação e reprodução das imagens na organização espetacular da mercadoria. E ao mesmo tempo dissimulam e mantêm a impotência real dos indivíduos para modificar realmente a sua vida cotidiana, para a tornar apaixonante, para viver como um conjunto de paixões harmonizadas.

c) A recusa dos papéis passa pela recusa das condições (é conveniente lembrar que o papel também pode servir de proteção, como o papel do bom operário encobrindo atividades de sabotagem e desvio).

d) Não se trata de mudar de papel mas de liquidar o sistema que constrange à representação de si mesmo contra a sua própria vontade. A luta revolucionária é a luta autenticamente vivida.

De fato, você luta já, conscientemente ou não, pelo direito à autenticidade, pelo termo das dissimulações e ilusões impostas, pelo direito de afirmação da especificidade de cada um sem o julgar nem condenar mas antes pelo contrário permitindo-lhe dar livre curso aos seus desejos e paixões, por mais singulares que eles sejam. Você luta por uma sociedade onde a verdade estará na prática e em todos os momentos. (Ver III, 11 a 18, 40 a 46).

19. Desconfia instintivamente de tudo o que é intelectual e leva à intelectualização? 

Nesse caso, compreendeu que: 

a) A função intelectual é, com a função manual, o resultado da divisão social do trabalho. A função intelectual é uma função de senhor, a função manual uma função de escravo. Uma e outra são igualmente desprezíveis, pelo que as aboliremos, abolindo a divisão do trabalho e a sociedade de classes.

b) Na luta da burguesia revolucionária contra a classe feudal e o espírito religioso, a cultura foi uma arma de libertação parcial, uma arma de desmistificação. Quando a burguesia se tornou por sua vez uma classe dominante, a cultura manteve durante algum tempo a sua forma revolucionária. Intelectuais como Fourier, Marx, Bakunin, extraíram das reivindicações proletárias, expressas em greves e revoltas, uma teoria radical que conscientizada e praticada pelos operários teria podido liquidar radicalmente a burguesia.

c) Pelo contrário, os pensadores especializados do proletariado – intelectuais operaístas e operários intelectualistas – brincando aos tribunais, aos políticos, aos guias da classe operária, transformaram a teoria radical em ideologia, ou seja, em mentira, em ideias ao serviço dos senhores. O socialismo e as variedades de jacobinismo (blanquismo, bolchevismo) constituíram esse movimento que anuncia a ditadura burocrática sobre o proletariado tal como ela surge com todos os partidos ditos operários, os sindicatos e as organizações esquerdistas.

d) Os intelectuais são o exército de reserva da burguesia, quer se trate de intelectuais operaístas ou de operários intelectualistas.

e) A cultura é hoje a forma de integração intelectual no espetáculo, a etiqueta de qualidade que promove a venda de todas as mercadorias. A pretexto da necessidade que cada um tem de se instruir, a cultura recupera a necessidade de conhecimento prático, transformando-o em saber separado; impõe uma mais-valia de saber abstrato, uma compensação ao vazio da sobrevivência cotidiana, uma promoção na burocracia dos especialistas. Como a cultura é um saber que se quer sem utilidade, acaba sempre por servir o sistema espetacular-mercantil.

f) Em particular, o pretenso saber econômico não passa de uma mistificação burocrático-burguesa. Não tem sentido senão na organização capitalista da economia e mesmo assim!… Uma vez esta abolida, qualquer operário está muito melhor preparado para organizar a nova produção do que o mais sábio dos economistas. (Sem contudo ultrapassarem o reformismo, os trabalhadores da LIP provaram se capazes de pôr a fábrica em funcionamento, passando muito bem quadros de chefia).

g) A recusa da intelectualização não tem sentido fora da luta pela liquidação da divisão do trabalho, da hierarquia, do Estado.

h) Os intelectuais operaístas não passam de imbecis e de sacanas. Como intelectuais aceitam, envergonhados ou não, conservar uma missão dirigente. Fazendo de operários, perpetuam a falácia do papel e uma função de escravo que já nenhum operário aceita.
Optando por trabalhar nas fábricas, enquanto os operários a isso são obrigados e só esperam o momento de se libertarem definitivamente do trabalho, os intelectuais operaístas são ridículos e contra-revolucionários (porque o apelo ao sacrifício é sempre contra-revolucionário).

i) Os operário que têm orgulho em serem são uns servos de merda. Os operários intelectualistas são tão sacanas como qualquer candidato a dirigente apostando no servilismo dos “bons operários”.

j) A teoria radical, saída das lutas de emancipação do proletariado pertence, de agora em diante, na sua forma mais clara e mais simples, àqueles que são capazes de a praticar, aos operários revolucionários, ou seja, a todos os proletários que lutam pelo fim do proletariado e da sociedade de classes. Ela pertence a todos aqueles que se empenham no combate pela autogestão generalizada, pela sociedade de senhores sem escravos.

De fato, você luta já por uma sociedade que se organiza de tal modo que as separações desaparecem, que a diversidade aumenta na unidade do projeto revolucionário, que o conjunto de conhecimentos, aprisionados na cultura, seja restituído à prática de enriquecimento da vida cotidiana; que o saber esteja onde estiver o prazer; que a paixão e a razão sejam inseparáveis; e que a supressão da divisão do trabalho, levada às suas consequências extremas, crie verdadeiramente as condições de harmonização social. (Ver III, 47 a 58).

20. Sente o mesmo desprezo por aqueles que fazem política e por aqueles que, não a fazendo, deixam que os outros a façam por si? 

Nesse caso, compreendeu que: 

a) É tradicional considerar os políticos como os palhaços do espetáculo ideológico. Isso permite desprezá-los, continuando no entanto a votar neles. Ninguém lhes escapa completamente, uma vez que ninguém escapa completamente à organização espetacular do velho mundo.

b) A política é sempre a razão do Estado. Para acabar com ela é preciso acabar com o sistema espetacular mercantil e respectiva organização de proteção – o Estado.

c) Não há parlamentarismo revolucionário, assim como não há, nem nunca haverá, um Estado revolucionário. Entre os regimes parlamentares e os regimes ditatoriais a diferença é a mesma que entra a força da mentira e a verdade do terror.

d) Como qualquer ideologia, como qualquer atividade separada, a política recupera as reivindicações radicais para a fragmentar, transformar no seu contrário. Por exemplo o desejo de modificar a vida transforma-se, nas mãos os partidos e dos sindicatos, numa reivindicação de salário, num pedido de tempo livre e outros melhoramentos da sobrevivência, que mais não é do que aumentar o mal-estar, tornando-o mais ou menos confortável momentaneamente.

e) As grandes ideologias políticas (nacionalismo, socialismo, comunismo), perderam a sedução à medida que as condutas sociais, impostas pelo imperialismo da mercadoria multiplicaram as “ideologias de bolso”. Por sua vez, as parcelas ideológicas (as ideias sobre a poluição, sobre a arte, o conforto, a educação, o aborto, a proteção dos animais) politizam-se em grosseiros grupos de tendência direitistas ou esquerdistas. Isso mais não é do que uma maneira de afastar cada um da única preocupação que, na verdade, toma a peito: transformar a sua própria vida cotidiana no sentido do enriquecimento e das aventuras passionais.

f) Não há ninguém que não lute por si próprio e que não esteja a maior parte das vezes a lutar contra si próprio. A ação política é uma das causas principais desta inversão do resultado procurado. Apenas a luta pela autogestão de todos em tudo responde ao desejo real de cada um. Daí que ela não seja política nem apolítica, mas social e total.

De fato, você luta já, conscientemente ou não, por uma sociedade onde a decisão pertence a todos, onde as divergências entre os indivíduos e os grupos são ajustadas de tal modo que não conduzem a destruições mútuas, mas pelo contrário, se reforçam e dão proveito a todos. É preciso que a parte lúdica, aprisionada e sufocada na política, se liberte num jogo de relações entre os indivíduos e entre os grupos afins, através de relações equilibradas e harmonizadas de acordos e desacordos. (Ver III, 75 a 92).