Texto publicado em KAOS #0, 08/1997 (boletim aperiódico e experimental do Grupo
Autonomia).
O que é autonomia? Quem são os autônomos? Antes de mais nada, é preciso
dizer que autônomo significa "que ou quem se governa". Por isso, em
contraposição às organizações hierárquicas e autoritárias, as mobilizações dos
grupos autônomos têm sempre o indivíduo como protagonista.
A Autonomia não é uma ideologia, nem mesmo uma política, mas uma
alternativa à política. Única tendência revolucionária que não se deixou
rotular, monopolizar ou rebocar por velhos dogmas, clichês ou hábitos, a
Autonomia se define como anticapitalista e antiautoritária, combatendo sem
tréguas o patriarcado, o capital, o estado e todas as opressões ditas
específicas.
Por autonomia entendemos uma luta pela transformação social, que
realizamos desde a auto-organização como setores explorados. Nosso modelo e
objetivo é a sociedade livre, sem classes, sem estado e sem capital; a
sociedade autogerida, cujo princípio regulador é: de cada um segundo suas
possibilidades, a cada um segundo suas necessidades.
No sentido amplo, somos milhões: operários desempregados ou
precarizados, estudantes sem futuro, presos, camponeses arruinados, sem-terra,
sem-teto, insubmissos, gays e lésbicas, prostitutas, grupos solidários, enfim,
todos os setores que se encontram à margem do sistema capitalista. São
autônomos os que se situam fora e contra as engrenagens do poder, com seus três
mecanismos de controle: instituições totais (caserna, escola, fábrica,
sanatório, hospícios, penitenciárias, etc), partidos e sindicatos.
Concretamente, autônomos são os coletivos e individualidades que se
propõem viver a Revolução hoje, sem esperar orientação de ninguém, sem aceitar
a direção de vanguardas autoproclamadas, cujo dogmatismo e autoritarismo serve
apenas para manter a exploração com outro nome. Reconhecemos, no entanto, o
papel desempenhado pelos autênticos revolucionários comunistas e anarquistas na
luta contra o sistema capitalista.
Viver a Revolução hoje é liberar espaços, incentivando o ócio autogerido
e superando o medo institucionalizado; é atacar os valores burgueses,
reapropriando a identidade na rebeldia, na criatividade e na solidariedade
ativa com os que lutam pela destruição do capital.
Um autônomo jamais diz : "Filia-te ao nosso grupo." Isto
porque os autônomos não se julgam donos da verdade. Mas um autônomo diz:
"Se queres mudar tua vida e transformar a sociedade, organiza-te e
luta!"
APRESENTAÇÃO
AUTONOMIA é um coletivo autônomo libertário, cujo objetivo é impulsionar
e estender as práticas sociais de luta por uma sociedade livre e igualitária.
Desde o primeiro momento, tentamos nos coordenar, no enfrentamento de questões
específicas e em torno de afinidades programáticas, com indivíduos e grupos,
formando uma rede.
Divulgamos nossas reivindicações e consignas, mediante cartazes,
boletins, panfletos... Pretendemos realizar diferentes atividades: palestras,
debates, projeção de vídeo, etc. Toda atividade do grupo AUTONOMIA é
previamente discutida e aprovada em assembléia mensal.
I) CONTRA A BARBÁRIE CAPITALISTA:
O capitalismo domina o mundo, destrói a natureza e rebaixa a dignidade
humana. Uma vez perdido o sentido da vida, só restaria a alienação da
sobrevivência, na qual o capital decide por nós, teleguiando-nos através de
dispositivos econômicos, políticos e ideológicos, que atuam extraindo o máximo
possível de lucros e privilégios para uma cada vez mais reduzida oligarquia de
exploradores e parasitas.
Em cada país, seja pobre ou rico, acentua-se a desigualdade entre a
imensa maioria de famintos e a insolente minoria de esbanjadores. No entanto,
os recursos do mundo são mais do que suficientes para que toda a humanidade
viva com dignidade e sem desperdícios.
Capitalismo significa injustiça social e destruição da natureza. Temos
que acabar com o capitalismo se quisermos construir uma sociedade livre e
igualitária, sem exploradores nem explorados, autogerida.
Já dura muitos anos a luta contra a dominação capitalista. A situação em
que estivemos mais próximos da Revolução Social vitoriosa foi na Espanha, em
1936, com o funcionamento das coletividades agrárias e das fábricas sob gestão
operária. Mas os revolucionários foram vencidos pelos inimigos de classe: os
fascistas (induída a reação clerical) e demais contra-revolucionários
(democratas burgueses e stalinistas).
O capitalismo tem sobrevivido, inclusive – sob a forma burocrática e
estatal – nos países impropriamente chamados socialistas ou comunistas (China,
Cuba, Vietnã, Coréia do Norte...).
Afirmamos que só há uma maneira de transformar radicalmente a sociedade:
a organização de todos os explorados e oprimidos com vistas à sua
auto-emancipação revolucionária.
II) AUTONOMIA E ORGANIZAÇÃO:
A evolução tecnológica dos meios de produção acarretou uma
reestruturação do sistema capitalista. Conseqüentemente, faz-se necessária uma
redefinição do conceito de classe social.
O trabalhador não é mais o operário de fábrica, característico do século
XIX e começos do século XX, nem, tampouco, o operário qualificado e o
operário-massa das grandes industrias que se desenvolveram até os anos 60.
Atualmente o conceito de operário social, além de incluir os já
tradicionalmente considerados trabalhadores, abrange também os desempregados,
os trabalhadores eventuais e os da economia submersa, os trabalhadores
imigrantes, os terceirizados e todos aqueles que, mesmo não tendo vínculo
jurídico com o capitalista, produzem mais-valia.
A organização que tem como finalidade a revolução social deve adequar-se
às novas condições, levando em conta o fracasso das velhas organizações
(sindicatos e partidos), e que estas não entendem nem atendem as expectativas
de luta do operário social. Uma organização revolucionária tem de considerar, a
todo o momento, qual é a realidade social em que atua, analisar a estrutura de
classes vigente e impulsionar a autoconstituição do sujeito da transformação
social. Se isto não acontece, teoria e prática deixam de se fecundar
reciprocamente, alienamo-nos da realidade e nos tornamos incapazes de
transformá-la.
Queremos uma autêntica ruptura com o sistema capitalista. Lutamos por
uma sociedade sem classes e sem hierarquias, que tenha abolido a família
patriarcal; por uma convivência livre e respeitosa com a natureza. Para
alcançar nossos objetivos, propugnamos uma organização de base assembleária, na
qual sejam respeitadas todas as posições e se busque o consenso possível.
Somos contra os profissionais da política, os líderes, os aspirantes a
ditadores do proletariado e outros infalíveis coveiros da revolução social.
Combatemos as delegações permanentes, a burocracia e todos os demais mecanismos
de representação/alienação do protagonismo dos trabalhadores.
Em si mesmo, o fato de pagar uma quantia periodicamente não é suficiente
para o compromisso orgânico, isto é, militante. É preciso assumir
responsabilidades. Ser autônomo é ser ativo.
III) COORDENAÇÃO:
Desde cada coletivo organizado, cada localidade, devemos coordenar-nos
para efetivar uma resposta global ao sistema capitalista. As lutas pela
transformação social exigem coordenação. Sem coordenação das lutas não há
possibilidade de ruptura com o sistema capitalista.
A coordenação se traduz, na prática, em posturas unitárias quanto aos
temas e lutas que nos são comuns. Havendo opiniões divergentes, o movimento
terá de ser flexível o bastante para que cada coletivo e/ou indivíduo faça o
que achar mais conveniente. Desta maneira evitamos cair em uma organização
fechada, dogmática e autoritária, o que nos faria perder o contato com as lutas
sociais.
IV) PERSPECTIVAS:
Nossa luta deve assumir o conceito de autovalorização, isto é: a luta
pela reapropriação de nossas vidas, recusando a mera sobrevivência da
passividade submetida e explorada pelo capital. O trabalho assalariado é uma
imposição do sistema capitalista, que a maioria das pessoas aceita para
sobreviver. É por sabermos disto que não elogiamos o mundo do trabalho, o mundo
da fábrica, pois seria elogiar o número de horas em que somos engrenagens do
capitalismo.
Lutamos pela recuperação do máximo possível do resultado de nossos
esforços.. Seja em forma de salários (mesmo que sejam absorvidos pela
inflação), seja em forma de seguro-desemprego, transportes gratuitos ou
reapropriação de nossa força de trabalho. Assim, cabe mencionar, a título de
exemplo, que, segundo estudos recentes, publicados nos EUA, 70% das mercadorias
'roubadas' nos estabelecimentos comerciais são reapropriadas pelos próprios
empregados.
Na medida de nossas possibilidades, devemos estar presentes em todas as
lutas econômico-sociais, impulsionando a auto-organização; explicando nossos
pontos-de-vista e apresentando respostas aos problemas concretos; atuando no
sentido de radicalizar e estender as lutas anticapitalistas. Em resumo:
propagando a idéia de que, dentro do sistema, as soluções oferecidas são meros
embustes. O mal está no próprio sistema capitalista, que pretendemos destruir.
Manifestando nossa solidariedade com todas as lutas anticapitalistas, do
mundo inteiro, repudiamos o dogmatismo que consiste em transpor mecanicamente
as formas de lutas ocidentais e a interpretação ocidental do que seja
libertário a outras regiões do planeta, cujas populações desenvolveram formas
de auto-organização e visões anti-hierárquicas próprias (índios dos EUA, comunidades
livres centro-americanas, etc.). Em todas as lutas, ressaltamos que o inimigo
comum, o responsável por todos os problemas é o sistema capitalista.
Esta tomada de posição não é uma teoria pronta e acabada. Portanto, está
aberta a toda crítica militante e solidária. Finalmente, enfatizamos que a
autocrítica é essencial para o avanço na construção de uma relação criadora
entre teoria e prática.