domingo, 23 de agosto de 2020

O IMPASSE CIDADANISTA

 Contribuição para a crítica do cidadanismo


Se a lógica da falsa consciência não pode reconhecer-se veridicamente a si própria, a procura da verdade crítica sobre o espetáculo deve ser também uma crítica verdadeira. É-lhe praticamente necessário lutar entre os inimigos irreconciliáveis do espetáculo e admitir estar ausente lá onde eles estão ausentes. São as leis do pensamento dominante, o ponto de vista exclusivo da atualidade, que reconhece a vontade abstrata da eficácia imediata, quando ela se lança nos compromissos do reformismo ou da ação comum dos resquícios pseudorrevolucionários. Aí, o delírio reconstitui-se na própria posição que pretende combatê-lo. Pelo contrário, a crítica que vai para além do espetáculo deve saber esperar.” Guy Debord,  Sociedade do Espetáculo.
As teses apresentadas a seguir não pretendem ser a última palavra sobre o tema que tratam. Dão, antes, um conjunto de pistas que nalguns casos poderão ser seguidas, aprofundadas e, noutros, simplesmente abandonadas. Se conseguirmos fornecer alguns pontos de referência (históricos etc.) a uma crítica que continua à procura de si mesma alcançaremos plenamente o nosso fim.
De igual forma pensamos que nem este texto nem nenhum outro poderá, apenas pela força da teoria, derrubar o cidadanismo. A verdadeira crítica do cidadanismo não se fará sobre o papel, mas será o resultado de um movimento social que deverá conter forçosamente esta crítica o que não será, obviamente, o seu único mérito. A ordem social na sua totalidade será posta em questão através do cidadanismo, precisamente porque o contém.
O momento parece-nos adequado para iniciar esta crítica. Se o cidadanismo, no seu começo, conseguiu manter uma certa confusão em redor daquilo que realmente era, hoje em dia, contudo, vê-se obrigado pelo seu próprio êxito a avançar cada vez mais de cara descoberta e a mais ou menos curto prazo deverá mostrar o seu verdadeiro rosto. Este texto trata de antecipar este desmascaramento, para que pelo menos não nos apanhe desprevenidos e saibamos reagir de forma apropriada.
I- Definição prévia
Limitar-nos-emos a dar uma definição introdutória do cidadanismo, ou seja, uma definição que se centrará apenas no que é mais evidente. O objetivo deste texto será começar a defini-lo de maneira mais precisa.
Por cidadanismo entendemos em princípio uma ideologia cujos traços principais são: 

  1. a crença de que a democracia é capaz de se opor ao capitalismo 
  2. o projeto de reforçar o Estado (ou os Estados) para pôr em marcha esta política 
  3. os cidadãos como base ativa desta política.

A finalidade expressa do cidadanismo é humanizar o capitalismo, torná-lo mais justo, proporcionar-lhe, de alguma forma, um suplemento de alma. A luta de classes é substituída aqui pela participação política dos cidadãos, que não só devem eleger os seus representantes como também atuar constantemente para fazerem pressão sobre eles, com o fim de aplicarem aquilo para que foram eleitos. Naturalmente os cidadãos não devem em caso algum substituir os poderes públicos. Podem, de vez em quando, praticar aquilo a que Ignacio Ramonet chamou “desobediência cívica” (e não “civil”, termo que recorda com incomodidade excessiva a “guerra civil”), para obrigarem os poderes públicos a mudar de política.
O estatuto jurídico de “cidadão”, entendido simplesmente como dependente da jurisdição de um Estado, adquire um conteúdo positivo, até mesmo ofensivo. Enquanto adjetivo, “cidadão” descreve em geral tudo o que é bom e generoso, aplicado e consciente das suas responsabilidades e de forma mais geral, como se dizia antes, “social”. É neste sentido que podemos falar de “empreendimento cidadão”, de “debate cidadão”, de “cinema cidadão” etc.
Esta ideologia manifesta-se através de uma profusão de associações, de sindicatos, de órgãos de imprensa e de partidos políticos. Em França temos associações como a ATTAC, os amigos do “Le Monde Diplomatique”, AC! (atuar juntos contra o desemprego), Droit au Logement (direito a abrigo), APOC (objetores de consciência), La Ligue des Droits de l’Homme (liga dos direitos humanos), a rede Sortir du Nucléaire (Sair do nuclear), etc.… Vale a pena salientar que a maioria das pessoas que militam no seio deste movimento fazem muitas vezes parte de várias associações ao mesmo tempo. No plano sindical temos a CGT (vinculada ao Partido Comunista Francês), a SUD (fundada por trotskistas), a Confédération Paysanne, a UNEF (União Nacional dos Estudantes de França) etc. Quanto aos partidos políticos estão representados pelos partidos trotskistas e pelos Verdes. No entanto, os partidos políticos têm um estatuto distinto, mas deixaremos esta questão para mais tarde. Na extrema esquerda do cidadanismo podemos incluir a Fédération Anarchiste, a CNT e os anarquistas antifascistas, que na maioria dos casos andam a reboque dos movimentos cidadanistas para acrescentarem o seu grão de areia libertário, mas que se encontram de fato neste mesmo terreno.
À escala mundial temos movimentos como o Greenpeace, etc. e todos aqueles sindicatos, associações, lobbys terceiro-mundistas, etc. que se reuniram em Seattle.
Seria aborrecido dar aqui uma lista completa – o importante é que todos estes grupos se encontram ideologicamente no mesmo terreno, com variantes locais. O cidadanismo é agora um movimento mundial que repousa sobre uma ideologia comum. De Seattle a Belgrado, do Equador a Chiapas, assistimos ao auge do dito movimento e trata-se agora, tanto para ele como para nós, de saber que caminho empreenderá e até onde pode chegar.
II- Premissas e fundamentos
As raízes do cidadanismo devem procurar-se na dissolução do velho movimento operário. As causas desta dissolução encontram-se tanto na integração da velha comunidade operária como no fracasso manifesto do seu projeto histórico, que se manifestou sob formas extremamente diversas (digamos, do marxismo-leninismo aos conselhistas). Este projeto apelava, nas suas diversas manifestações, a que o proletariado retomasse o modo de produção capitalista, modo de produção de que é filho e por conseguinte herdeiro. O crescimento das forças produtivas, nesta visão do mundo, também era a marcha para a revolução, o movimento real através do qual o proletariado se constituía como futura classe dominante (a ditadura do proletariado), dominação que conduzia posteriormente (após uma problemática “fase de transição”) ao comunismo. O fracasso real deste projeto teve lugar durante os anos vinte e em 1936-38 em Espanha. O movimento internacional dos anos 60 (1968) tem sido com frequência considerado “o segundo assalto proletário contra a sociedade de classes”, depois daquele que teve lugar na primeira metade do século vinte.
Com a crise e o início da globalização na sua forma moderna, os anos 70 e depois os anos 80 marcam o ocaso e o desaparecimento deste projeto histórico. Esta globalização caracteriza-se pela crescente automatização, logo pelo desemprego em massa e pela deslocalização produtiva para os países mais pobres, que expulsou das fábricas o velho proletariado industrial dos países mais desenvolvidos. Observa-se, aqui, uma tendência empresarial para se “desfazer”, pelo menos formalmente, duma boa parte do setor produtivo para o relegar à subcontratação, para idealmente apenas se ocupar de marketing e de especulação. É o que os cidadanistas chamam a “financeirização do capital”. Uma empresa como a Coca-Cola não possui atualmente, de forma direta, praticamente nenhuma unidade de produção e contenta-se com a “gestão da marca”, com a frutificação do seu capital bolsista e com o “reinvestimento” através da compra dos concorrentes menores que anteriormente já havia forçado à deslocalização, etc. Há um duplo movimento de concentração do capital e de fragmentação da produção. Um carro pode ser composto por para-choques fabricados no México, por componentes eletrônicos de Taiwan sendo o conjunto montado na Alemanha enquanto os lucros circulam por Wall Street.
Quanto aos Estados, acompanham este processo de globalização desfazendo-se do setor público herdado da economia de guerra (desnacionalização), “flexibilizando” e reduzindo tanto quanto possível o custo do trabalho. Isto teve como resultado, em França, a lei das 35 horas que o movimento cidadanista – à esquerda e à direita, e tanto nas suas manifestações oficiais como não oficiais- tanto reclamou; o movimento de desempregados de 1998 e o PARE (Plano de ajuda para o regresso ao trabalho).
A chegada da esquerda ao poder em 1981 e o movimento de estudantes e de ferroviários em 1986, são pontos de referência que nos permitem situar o progresso desta dissolução e a substituição do velho movimento operário pelo cidadanismo no quadro da globalização.
O movimento de 1968, em França como no resto do mundo foi com efeito “o último assalto contra a sociedade de classes”. O seu fracasso marca a liquidação histórica daquilo que até esse momento foi o sonho da ascensão histórica do proletariado como proletariado, ou seja, como classe do trabalho. A autogestão e os conselhos operários foram o limite mais extremo deste movimento. Não nos arrependemos. Foi também toda uma contestação social muito mais ampla e multiforme que foi liquidada quando a pesada chapa de chumbo dos anos oitenta se abateu sobre o mundo.
Apesar de ainda se ouvir nas manifestações o slogan “é tudo nosso, nada é deles” isto é tal como sempre foi, exatamente contrário à realidade. Obviamente faz referência a uma ilusória “repartição da riqueza” (e de que riquezas podemos falar hoje?), mas provém diretamente do velho movimento operário, que pretendia gerir ele mesmo o mundo capitalista. Nesta frase vislumbra-se um ressurgir, uma continuidade e uma tergiversação dos ideais do velho movimento operário (evidentemente no que tinha de menos revolucionário) por parte do cidadanismo. É o que se chama a arte de aproveitar os restos. Mais adiante voltaremos a este ponto.
O desaparecimento da consciência de classe e do seu projeto histórico, tornados caducos após o estilhaçamento e o parcelamento do trabalho, após o desaparecimento progressivo da grande fábrica “comunitária” assim como a precarização laboral (tudo isto resultado não de um complô que amordaça o proletariado mas do processo de acumulação de capital que conduziu à atual globalização) deixaram o proletariado afônico. Este chega, inclusivamente, a duvidar da sua própria existência, dúvida que foi atiçada por grande número de intelectuais e pelo que Debord definiu como o “espetáculo integrado”, que não é mais do que a integração no espetáculo.
Perante esta ausência de perspectivas, a luta de classes apenas podia encerrar-se em lutas defensivas, às vezes muito violentas, como no caso da Inglaterra. Mas esta energia era sobretudo a energia do desespero. Também se pode salientar que esta perda de perspectivas se manifestou com frequência nas pessoas que viveram os anos 60-70, por um desespero pessoal muito real, levado às vezes até às suas últimas consequências, o suicídio ou o terrorismo.
O cidadanismo inscreve-se, pois, neste marco: enterrada a revolução, quando já nenhuma força se sentia capaz de empreender a transformação radical do mundo e uma vez que a exploração seguia o seu curso, era necessário que alguma forma de contestação se expressasse. Esta foi o cidadanismo.
O seu ato oficial de nascimento pode situar-se no decurso da agitação de Dezembro de 1995 (em França). Este movimento, que nasceu sobre a base real da oposição à privatização do setor público e à degradação das condições de trabalho que se seguiu e à perda do próprio sentido do trabalho apenas podia manifestar-se, nesta situação, como defesa do setor público e não como questionar da lógica capitalista em geral, tal como se manifesta no serviço público. A defesa do dito setor implica, logicamente, que se considere que este está ou deveria estar fora da lógica capitalista. Não foi uma boa crítica que se fez a este movimento quando se lhe reprovou o fato de ser um movimento de privilegiados, ou simplesmente de egoístas com interesses meramente corporativos. Mas pode-se constatar que inclusivamente as ações mais generosas ou radicais deste movimento continham os mesmos limites. Abastecer gratuitamente todas as casas de eletricidade é uma coisa, refletir sobre a produção e o uso da energia é outra. Pode ver-se nestas ações que o Estado é concebido como uma comunidade parasitada pelo capital, capital que se interpõe entre os cidadãos-utentes e o Estado. O cidadanismo não diz outra coisa.
Podemos ver que o cidadanismo não poderia recuperar um movimento que fosse mais radical. Por agora, tal movimento simplesmente não existe. O cidadanismo desenvolve-se como ideologia produzida necessariamente por uma sociedade que não concebe perspectivas de superação.
Também podemos salientar que o movimento de 1995, data de nascimento do cidadanismo, foi um fracasso até mesmo nos seus limitados objetivos básicos. A privatização do setor público continua a seguir de vento em popa e tal setor pode, inclusivamente, situar-se na vanguarda da ideologia do privado enquanto empresa participativa com implicações na gestão etc. Neste há despedimentos maciços, gera-se cada vez maior precariedade laboral- o chamado “trabalho-jovem”, suprimem-se postos de trabalho e sobrecarregam-se aqueles que restam. Também o setor público está em primeira linha no que respeita à aplicação da lei das 35 horas, quer dizer, à flexibilização. Uma vez mais, se tal for necessário, podemos ver que a lógica do Estado e a do capital não se opõem em absoluto, o que constitui uma das limitações internas do cidadanismo.
III- A relação com o Estado, o reformismo e o Keynesianismo
A relação do cidadanismo com o Estado é tanto de oposição como de apoio, de apoio crítico, digamos. Pode opor-se ao Estado, mas não pode prescindir da legitimidade que lhe oferece. Os movimentos cidadanistas devem converter-se rapidamente em interlocutores e, para isto, por vezes devem empreender ações “radicais”, ou seja, ilegais ou espetaculares. Trata-se tanto de se colocar na posição de vítima, de apanhar o Estado em falta (isto é, de opor o Estado ideal ao Estado real) e de chegar o mais rapidamente possível à mesa de negociações. A chegada dos CRS (Corpos de Segurança Republicanos, antidistúrbios) veio confirmar que os cidadãos foram ouvidos. Naturalmente, tudo isto deve acontecer sob o olhar das câmaras. Aqui a repressão é a precursora dos movimentos cidadanistas: o confronto já não é, como noutros tempos, o momento em que se mede a relação de forças, mas consiste sim numa legitimação simbólica. Daí, por exemplo, o mal entendido entre René Riesel (ex-membro da Internacional Situacionista) e alguns outros da Confédération Paysanne (confederação camponesa) que pretendiam criar esta relação de forças e José Bové (e manifestamente a maior parte da Confédération), que através de uma ação espetacular pretendiam fazer do seu movimento um interlocutor com o Estado, o que de fato obtiveram parcialmente.
O próprio Estado aceita de boa vontade estas práticas e qualquer pessoa pode hoje fazer uma pequena manifestação, por exemplo, bloquear a periferia e ser recebido oficialmente logo a seguir para expor as suas reivindicações. Os cidadanistas indignam-se com este estado de coisas que contribuíram para criar, pensando que, ainda assim, não se deve “incomodar o Estado por ninharias”. Os interlocutores privilegiados veem com maus olhos os parasitas e demais aves de rapina da democracia.
Deste modo, algumas práticas cidadanistas são promovidas diretamente pelo Estado, como o demonstram as “conferências cidadãs” ou os “debates de cidadãos” com os quais o Estado pretende “dar a palavra aos cidadãos”. É interessante ver até que ponto este movimento se conforma com qualquer sucedâneo de diálogo, e está disposto a ceder em qualquer coisa desde que o escutem e que os especialistas tenham “atendido às suas inquietudes”. O Estado joga, aqui, o papel de mediador entre a “sociedade civil” e as instâncias económicas, do mesmo modo que os cidadãos farão de intermediários entre o programa do Estado (que não é mais do que a cadeia de transmissão da dinâmica do capital) revisto de forma crítica e a “sociedade civil”. Isto pôde ver-se com a lei das 35 horas. Os cidadanistas jogam aqui o papel outorgado anteriormente aos sindicatos no mundo do trabalho para tudo o que se denomina “problemas da sociedade”. A amplitude da mistificação mostra também a amplitude do campo da contestação possível, que se estendeu a todos os aspectos da sociedade.
Na sua relação com o Estado, os cidadanistas – pelo menos em França- começam a adoecer em consequência da sua vitória. Cada vez mais o movimento se cinde e se recompõe entre os que tendem a confiar no poder (à esquerda) e os mais radicais, que querem continuar a luta. Mas o programa essencial ficou delineado. Quando a esquerda chegar ao poder em quem mais poderiam votar? Fazem falta mais verdes no governo, ou devem estes retirar-se do poder para exercerem mais favoravelmente o seu papel de oposição? Mas para que serve um partido político se não para entrar na arena democrática?
O cidadanismo é, pela sua própria constituição, incapaz de se concentrar num partido, pelo menos nas sociedades democráticas que conhecemos. Seria preciso uma ditadura ou uma democracia autoritária para que as aspirações da pequena e da média burguesia entrassem em ressonância com uma contestação mais ampla e lograssem organizar um partido democrático de oposição radical. Vimo-lo em Belgrado ou na Venezuela com o nacional-populismo de Chávez. Nos locais onde já existe democracia, pelo contrário, os partidos que representam as aspirações desta pequena e média burguesia já existem e é precisamente neste sistema de partidos, que grande parte dos cidadanistas já não se fia. Nos países mais desenvolvidos o cidadanismo concentra-se essencialmente em redor de um desejo de democracia mais direta, “participativa”, de uma democracia de “cidadãos”. Naturalmente não propõem nenhum modo de o conseguir e este desejo de democracia direta acaba, como sempre, diante das urnas ou na abstenção impotente.
Deste ponto de vista, os Verdes oferecem um espetáculo interessante uma vez que manifestam este limite do cidadanismo. Surgidos dos movimentos ecologistas dos anos 70, conseguiram manter-se à tona durante os anos 80. Mas continuam a basear-se no velho modelo de partido, uma forma hierarquizada que é oposta à natureza nebulosa das forças vivas do cidadanismo. Devido à sua própria natureza corriam assim o risco de se encontrarem confrontados com a experiência real do poder, que foi o que acabou por suceder. De fato, este é o único risco político que correm os “reformistas”, o de governar. Militar neste quadro nem sempre está isento de consequências, como os Verdes puderam comprovar à sua própria custa.
O que permite contornar o risco é o “lobbying”. Os lobbies nunca exercem o poder de forma direta. Por isso não se lhes pode imputar os “fracassos” do Estado. O militantismo do “lobbying” não tem fim, em todos os sentidos do termo. Há aqui algo enormemente satisfatório para as pessoas que desejem compromissos sem correr demasiados riscos políticos. Num lobby todos se encontram “entre os seus”, não é preciso procurar uma base social como ocorre com os partidos clássicos usando meios mais ou menos demagógicos. Todos podem com toda a tranquilidade mostrar-se “radicais”. Podem fazer tranquilamente de conselheiro crítico do Príncipe sem ter de enfrentar as dificuldades de governar. Podem lamentar eternamente a falta de “vontade política” em matéria nuclear, de imigração ou de saúde pública sem necessidade de considerarem minimamente o que um Estado pode efetivamente fazer no contexto capitalista.
Um dos exemplos mais delirantes disto é a inenarrável associação ATTAC. É mais do que sabido que a própria ideia de taxação das transações bolsistas faz o economista mais estúpido contorcer-se a rir. Torna-se evidente que a aplicação num só Estado desta transação o mergulharia numa profunda crise e que é visivelmente impossível a aplicação mundial desta medida. Salta à vista que inclusivamente no caso de uma organização como a OMC, tomada de um arrebatamento de loucura, preconizar esta medida, a recusa mundial seria tal que não lhe restaria mais remédio do que voltar a metê-la na gaveta. E para levar isto ao absurdo, se tal medida fosse aplicada seguir-se-ia automaticamente um aumento mundial da exploração, para corrigir as perdas.
Nada disto impede os economistas da ATTAC de apregoarem o assunto com gráficos e curvas, perante a indiferença divertida dos que exercem o poder. Estão dispostos a recebê-los de vez em quando para se rirem um bocado e sobretudo para mostrar até que ponto o Estado se mostra atento a todas as propostas que os cidadãos estejam dispostos a fazer. De todas as formas, há que conceder à ATTAC o mérito de ter introduzido numa disciplina tão sinistra como a economia esse elemento cómico de que ela carecia.
Vemos aqui que a sua impotência não é ainda um problema para o cidadanismo. Quase ninguém pensa em julgá-lo a partir dos seus resultados, uma vez que a urgência em obter resultados ainda se não fez sentir. Quando isso começar a fazer-se em grande escala, sem dúvida que já não lhe restará muito tempo.
Chegados a este ponto não podemos deixar de evocar a questão do “reformismo” cidadanista. Sabemos que os cidadanistas assumem de boa vontade este qualificativo. Percebe-se que querem, através do emprego deste termo, sugerir que são mais pragmáticos e mais realistas do que os malditos idealistas revolucionários. E efetivamente, podemos ver até onde chega o seu pragmatismo e o seu realismo com uma associação como a ATTAC.
De qualquer forma nós, pobres revolucionários, compensamos a nossa falta de pragmatismo com o mau hábito de julgar muito as coisas recorrendo à história, isto é, ao que realmente se produziu até agora. E somos forçados a constatar que o reformismo surge sempre nos momentos de crise do capitalismo. A Frente Popular, por exemplo, era reformista. Num momento em que a insurreição operária era generalizada, em que as fábricas estavam ocupadas, entre outras respostas, a Frente Popular dava férias pagas aos operários e às operárias, coisa que jamais tinha sido reivindicada. Keynes também era reformista, e a crise de 1929 teve algo a ver com isto. Contudo, atualmente não há greves insurreccionais, nem crises de investimento, nem baixas significativas do consumo. Inclusivamente a recente e relativa subida das taxas de juro, após uma década de descida contínua e o muito previsível “debacle”  dos “valores tecnológicos”, são percebidos mais como uma consolidação dos mercados do que como um risco de crise. Não há atualmente nenhuma crise real do capital. Não deveria, pois, haver reformistas.
Por outro lado, todas as reformas empreendidas no capitalismo apenas tiveram como objetivo salvar o próprio capitalismo. Não há reformas anticapitalistas. Keynes não escondia que era um liberal, nem que queria salvar o sistema liberal posto em perigo pela crise de 1929.
Deveremos deter-nos aqui um instante sobre Keynes, apresentado pelo cidadanismo como o economista dos milagres, remédio para todos os nossos males. Antes de tudo, deve dizer-se que Keynes conhecia muito bem o capitalismo da sua época, uma vez que havia amealhado uma fortuna pessoal de 500.000 dólares dedicando unicamente uma hora e meia por dia a transações internacionais em divisas e bens, no tempo em que trabalhava para o governo inglês. Percebe-se que o Crack de 1929 não o tenha deixado indiferente.
Crack de 1929 marca a entrada do capitalismo no seu período moderno. É o resultado da formidável expansão do século XIX, que parecia não ter limites, especialmente na América. O sonho americano chegava ao seu ponto cimeiro e ia acabar num pesadelo. Este sonho repousava sobre o espírito de iniciativa, na audácia empresarial dos herdeiros dos conquistadores do Oeste, mas foi abatido pela realidade do capitalismo, onde os investimentos não se fazem por gosto pelo risco ou por espírito de iniciativa, mas para obter lucros.
Tendo alcançado a sua maturidade, o capitalismo começava a estagnar e a perceber que o crescimento indefinido não era algo adquirido como se de uma lei natural se tratasse. Os investimentos diminuíam, ou melhor, atingiam o descalabro. As teorias económicas clássicas postulavam que enquanto houvesse procura sempre haveria oferta, negligenciando o fato de que as empresas não produzem para fornecer bens, mas para extrair a mais valia dessa produção. Foi neste contexto que Keynes interveio. O que era realmente necessário era o investimento, a saber, criar mercados, inventar novos produtos, entrar no mundo do consumo de massa. No contexto da crise, o Estado devia encarregar-se do esforço inicial, quer dizer: voltar a pôr, na medida do possível, as pessoas a trabalhar, estabelecer uma política monetária inflacionista e criar infraestruturas como base sobre a qual o capital privado pudesse reinvestir. Quem fabricará automóveis, disse Keynes, se não há estradas suficientes?
De fato, o presidente Roosevelt já tinha começado a pôr em prática esta política sem o precioso apoio técnico que Keynes lhe traria mais tarde. Também não devemos esquecer que a crise de 1929 tinha trazido milhões de desempregados para a rua nem que as “vinhas da ira” começavam perigosamente a amadurecer.
Vemos, em todo o caso, que o keynesianismo é essencialmente liberal. Considera simplesmente que o liberalismo não se pode regular por si mesmo, que o simples jogo da oferta e da procura não é o motor que permita ao capital crescer indefinidamente e que é, assim, ao Estado que compete reconstruir as condições de crescimento para dar lugar posteriormente aos investidores privados. Em 1934 Keynes escreve numa carta ao New York Times: “Vejo o problema da recuperação económica da seguinte forma: Quanto tempo necessitarão as empresas normais para acudirem na ajuda à economia? A que escala, por que meios e durante quanto tempo os custos anormais do governo devem prosseguir, à espera da dita recuperação?” Pusemos anormais em itálico. Vê-se claramente que a ideia de Keynes não era de forma nenhuma a de um controle permanente e contínuo do capital privado pelo Estado ou por diversas instâncias internacionais. Keynes não era socialista.
De fato, estava tão longe do socialismo que em 1931 escreveu, com referência ao comunismo: “Como poderia adoptar uma doutrina que, preferindo o pão aos bolos, glorifica o proletariado fedorento em detrimento da burguesia e da “intelligentsia”, que apesar de todos os seus defeitos são a quintessência da humanidade e estão certamente por detrás de toda a obra humana?”. É verdade que a burguesia era, na altura, bem diferente daquilo em que se transformou e que ainda não sentia a necessidade de se lamentar, como o faz Viviane Forrester, sobre aquilo a que se convencionou chamar “o horror económico”.
Para terminar é necessário assinalar que as teorias de Keynes tinham os seus limites e que o capitalismo tem outros métodos para “relançar o investimento”. Dez anos após a crise de 1929, começava a guerra que iria devastar o mundo, dar uma chicotada inesperada ao progresso tecnológico e fazer entrar o mundo industrializado nos felizes anos do consumo de massas. De fato, o próprio Keynes deu a sua contribuição para este “relançamento do investimento” escrevendo um opúsculo intitulado Como financiar a guerra.
Os cidadanistas pretendem criticar o liberalismo valendo-se de Keynes. Uma vez que também nunca pretenderam ser anticapitalistas deduz-se daqui que, se são contra o liberalismo sem deixar de ser pro capitalistas, estão a favor do que se chamou noutros tempos “socialismo”, quer dizer, capitalismo de Estado. Assim entende-se melhor a presença dos trotskistas nas suas fileiras. Mas, logicamente, também se defendem disto. É realmente complicado saber afinal, aquilo que querem.
Afirmamos que atualmente não há nenhuma crise capitalista e eles, naturalmente, afirmam o contrário. De fato, é necessário que haja uma crise para que sejam necessários. A crise é o elemento natural do reformismo. Pensavam que iam encontrar uma no sudeste asiático, mas esta crise era antes a prova de que o capitalismo aprendeu bem as lições de Keynes e que já não acredita que o liberalismo se possa regular sozinho. Tanto mais que a crise asiática foi rapidamente sufocada, inclusive com algumas “consequências sociais”. Mas o capitalismo não se incomoda com as “consequências sociais”, desde que não seja posto radicalmente em questão. Não haverá mais keynesianismo social nem mais Trinta Anos Gloriosos. Isso também ficou para trás.
Se os cidadanistas podem falar de crise é porque o Estado falou primeiro dela. De há trinta anos para cá diz-se que a França está em crise. Esta “crise”, real no seu início, logo se tornou numa forma de justificar a exploração. Hoje em dia, é a “retoma” que joga este papel e os reformistas estão bem irritados. Ela obriga-os a reajustarem o seu discurso, sempre decalcado do Estado, e aqueles que nos falavam de uma crise mundial generalizada falam-nos, hoje, de “repartir os frutos do crescimento”. Onde está a coerência?
Onde estão, então, esses keynesianos antiliberais, esses reformistas sem reforma, esses estatistas que não podem participar no Estado, esses cidadanistas?
A resposta é simples: estão num beco sem saída, num impasse.
Pode parecer descabido afirmar que um movimento que ocupa tão manifestamente todos os âmbitos da contestação possa encontrar-se num impasse.
Alguns verão nisto uma afirmação gratuita, ditada por não se sabe bem que ressentimento. Contudo evocámos mais acima a decomposição e o desaparecimento de um movimento muito mais velho e dotado de uma base social infinitamente mais ampla e combativa, sem ter adoptado para isto nenhuma precaução oratória particular, tão evidente nos parece hoje este desaparecimento. Da mesma forma pensamos que  outro movimento social é possível, sobre bases até agora  inéditas.
IV. Cidadanismo e cidadãos.
Quando Ignacio Ramonet fala de desobediência “cívica” e não de desobediência “civil” marca uma  diferença, reveladora, que mostra a relação que existe entre o cidadanismo e a sua própria base. A palavra “civil” refere-se de forma objetiva e neutra ao cidadão de um Estado que não escolheu nascer nele. O termo “cívico” define o que corresponde a um bom cidadão, ou seja, àquela pessoa que demonstra ativamente que faz parte desse Estado. Como se pode comprovar, a diferença é essencialmente de caráter moral.
De fato, uma das forças do cidadanismo reside nesse caráter essencialmente moral, para não dizer moralizador. Passa facilmente da denúncia da “crise” para a proposta de “repartir os frutos do crescimento” sem ter em conta os fatos e sem realizar nenhuma análise. O que conta é ter a posição mais “cívica” possível, ou seja, a mais generosa, a mais moral. E, claro, toda a gente se posiciona pela paz, contra a guerra, contra a “alimentação que prejudica a saúde”, pela “comida saudável”, contra a miséria, pela riqueza. Resumindo, mais vale ser rico e gozar de boa saúde em tempos de paz do que ser pobre e estar doente em tempos de guerra.
Num mundo que se situa energicamente, um século depois de Nietzsche, para além do bem e do mal, o que mais se vende é a moral. Mas essa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.
Podemos ver, por exemplo, o mal-estar que causou entre as fileiras dos cidadanistas o penoso assunto de Givers. Esta revolta teve a particularidade de ser ao mesmo tempo um ressurgimento arcaico da agitação operária e a manifestação de um desespero muito próprio dos tempos de hoje. Um cidadanista perguntava-se a partir das páginas do jornal “Le Monde”, durante o motim, se a ação dos operários da CELLATEX podia ser qualificada de “ação cidadã”. Podemos responder: com uma navalha ao pescoço, totalmente perdidos, os operários assalariados de Givers não dispunham do otimismo nem da inquietude bem pensante própria dos leitores do “Le Monde Diplomatique”, não são cidadãos e não atuaram enquanto tal. A impotência que manifestaram os cidadanistas para atuar em tais circunstâncias, demonstra claramente que tipo de reação poderiam ter noutras circunstâncias, a uma escala maior. Naturalmente não tardariam em apelar à repressão “dos maus cidadãos” em nome da democracia, do Estado de Direito e da moral. Com efeito, o discurso do cidadanista no “Le Monde” não se encaminhava para outro lado, uma vez que pretendia com o seu questionamento insidioso (totalmente objetivo, claro) cortar pela base qualquer simpatia que pudesse surgir e chamar à razão os cidadãos para prepararem a possível repressão (que não teve lugar, naturalmente, já que na situação atual os trabalhadores não tinham outra opção a não ser negociar). De qualquer maneira, é interessante ver como nesta mini crise um cidadanista se apressa a propor os seus serviços de mediador ao Estado. O cidadanismo é potencialmente um movimento contrarrevolucionário.
O exemplo mostra também que o cidadanismo é incapaz de reagir em presença de movimentos que não tenham sido criados por ele mesmo.
Por outro lado, é importante destacar que a base social do cidadanismo é muito mais ampla e difusa do que a formada por militantes de associações e de sindicatos.
O cidadanismo reflete as preocupações de uma determinada classe média culta e de uma pequena burguesia que viu desaparecer os seus privilégios e a sua influência política na altura que desaparecia a antiga classe operária. A reestruturação mundial do capitalismo provocou a queda do velho capital nacional, e por conseguinte, a da burguesia que o possuía e das classes médias que esta empregava. A antiga sociedade burguesa do século XIX, cheirando ainda ao Ancien Régime (Antigo Regime) desapareceu por completo. A consolidação do Estado e a crítica da globalização atuam como nostalgia desse velho capital nacional e dessa sociedade burguesa, assim como a crítica das multinacionais não é senão a expressão da nostalgia dos negócios familiares. Uma vez mais lamentam-se de um mundo que se perdeu.
Um mundo que se perdeu duas vezes, uma vez que o termo “cidadão” também se refere à antiga denominação republicana, sem dúvida mais à do início da revolução burguesa  do que à da Comuna de Paris (embora um recente filme interminável e voluntariamente anacrónico que trata o tema, pareça indicar que também se quer recuperar a Comuna). Mas esta revolução foi levada a cabo e nós vivemos no mundo que ela criou. Os sans-culotte ficariam bastante surpreendidos se vissem a transformação que sofreu a república que eles próprios ajudaram a construir, mas da mesma forma que é impossível tomar banho duas vezes no mesmo rio, os mortos nunca regressam. Não obstante, pode ser que futuros sans-culottes vestidos de Nike se ponham qualquer dia a passear pelas ruas de um moderno subúrbio.
Mediante o cidadanismo, as classes médias deserdadas reconstroem a sua identidade de classe perdida. De modo que um local “bio” pode apresentar-se como “um escaparate dos estilos de vida e do pensamento cidadão”. Cuidado! Fiquem sabendo que as pessoas que não comem “bio” não são “cidadãos”. Um jovem cidadanista pode, então, chegar a simplificar rapidamente as suas dúvidas sobre o proletariado: “que se pode esperar deles? Vão fazer compras ao Minipreço”.
Os cidadanistas não poderão, sobre as bases que ocupam atualmente, recuperar movimentos sociais mais radicais, uma vez que deles se encontram visceralmente separados. Chegado o momento, apenas poderão oferecer ao Estado que defendem, uma garantia moral para a repressão. As pseudo-soluções que propõem perante uma situação de crise real aparecerão como o que realmente são, um meio para preservar a ordem existente. Quando importantes grupos de pessoas começarem a procurar respostas para as suas situações concretas, as oposições abstratas e sem fim entre Estado e Capital, “verdadeira” democracia e democracia que vivemos ou “economia solidária” e liberalismo serão insuficientes. Um movimento que surja de uma grande crise, quer dizer, do questionamento das próprias condições de existência, não aguentará estes jogos por muito tempo.
No entanto, os cidadanistas, já que estão lá, poderão ocupar durante um tempo o lugar da revolta, a qual poderia também tomar a forma de um nacionalismo exacerbado, nacionalismo que eles próprios terão alimentado e desenvolvido (atualmente já existem as premissas, por exemplo, a posição antiamericanista desenvolvida por José Bové e muitos outros). Não obstante, a crítica do capital globalizado, não tem face a ela a alternativa de voltar ao capital nacional, defendido pelo Estado. Se esta alternativa muito improvável entrasse em jogo, o mais provável é que se desencadeasse uma guerra.
Como podemos ver, nada garante que o próximo movimento social seja revolucionário. Em todo o caso, contribuirá para desmascarar definitivamente o cidadanismo, e pode ser que abra uma nova via para retomar o muito velho projeto de transformar o mundo, para além do Estado e do Capital.
V. Cidadanismo e revolução.
Todo o velho movimento revolucionário se baseava em que os operários tomassem as rédeas do modo de produção capitalista, do qual se sentiam virtualmente donos, devido ao lugar efetivo que ocupavam na produção. A automatização e a precarização dos anos 70 pulverizaram este lugar efetivo, que correspondia a uma verdadeira relação entre o proletariado e a produção. Alguns radicais, como os da Encyclopédie des Nuisances ou  Jacques Camatte (de Invariance) sentiram ou teorizaram a dita transformação. Contudo, não podiam sair da antiga concepção de revolução sem abandonar a própria revolução, e de fato, foi isso que aconteceu.
A Internacional Situacionista preconizava, apenas, que se “empregassem melhor as forças produtivas” para criar situações, pela via dos conselhos operários. Não viram (mas como poderiam vê-lo naquele momento?) que o modo de produção capitalista era capitalista e que a automatização que preconizavam não era um meio para libertar tempo e “viver sem tempos mortos e desfrutar sem entraves”, mas sim, apenas um modo de extrair lucro para o capital. E após a “contrarrevolução” dos anos 70-80 simplesmente identificaram esta mesma produção, que os operários não puderam tomar, como a fonte de todos os problemas.
Em lugar de perceber o desaparecimento do velho movimento operário como uma nova condição de um movimento revolucionário nascente, e sobretudo como uma oportunidade para esse movimento, viveram-no como uma catástrofe. De fato, foi uma grande catástrofe para esse velho movimento operário, a sua certidão de óbito. A grande maioria da geração posterior aos movimentos de 68 perdeu-se no vazio ocasionado por essa derrota. E não pretendemos, de todo, reprovar lhe isto, já que nem num dia nem em vinte anos se pode esquecer uma concepção vigente durante um século.
Hoje em dia, pode começar a fazer-se um balanço. Desde 1995, temos tido o duvidoso privilégio de poder observar como se reconstruía uma ideologia sobre as ruínas da revolução. Temos podido identificar rapidamente os novos aspectos da dita ideologia, mas demorámos muito mais tempo a perceber o seu aspecto arcaico, isto é, quão determinada estava pela história.
Anteriormente comentamos que o cidadanismo acomodava os restos do velho movimento revolucionário. O cidadanismo quer ser hoje “reformista” porque no fundo o velho movimento revolucionário não constituía uma superação do capitalismo, mas apenas a sua gestão por parte da “classe ascendente”, que se julgava que fosse o proletariado. A “gestão operária” do capital converteu-se simplesmente em “repartição da riqueza” ou “taxação do capital”, com a produção desaparecendo atrás do lucro, do capital financeiro e do dinheiro. Um slogan francês proclama “De l’argent, il y en a, dans les poches du patronat” (o dinheiro está, é nos bolsos dos patrões). É verdade, mas em nome de quê deveria esse dinheiro chegar aos bolsos dos proletários, perdão, dos “cidadãos?”.
O velho movimento operário, já que não pôde levar à realização da comunidade humana reduz-se, de forma obscena e reveladora, a conseguir parte dos lucros capitalistas (embora seja importante comentar que se “só” se pede dinheiro ao capitalismo é porque sabemos que não podemos esperar nada mais). É sem dúvida motivo suficiente para desalentar um velho revolucionário, um daqueles que achava que podia construir um mundo melhor. Mas se a crença de que se podia construir esse mundo mediante a gestão operária do capital já era uma ilusão, também o é acreditar que se pode obrigar o capitalismo a partilhar os seus lucros para máximo contentamento de todos os “cidadãos”, isto se supusermos que o seu dinheiro pode dar-nos felicidade. O cidadanismo aborda o centro de uma ilusão de um século, e essa ilusão de fato já morta nos fatos, está a ponto de ser destruída.
“É tudo nosso, nada é deles”, proclamavam obstinados os manifestantes. Contudo o capital, essa massa de dinheiro que apenas pretende acumular-se mediante a dominação da atividade humana e, por conseguinte, mediante a transformação da dita atividade segundo as suas próprias regras, criou um mundo no qual “tudo é dele, nada é nosso”. E não se trata unicamente da propriedade privada dos meios de produção, mas também da sua natureza e dos seus objetivos. O capital não se limitou a apropriar-se de tudo o que era necessário para a sobrevivência da humanidade, o que constituiu o primeiro passo da sua dominação, mas transformou tudo isto, graças à industrialização e à tecnologia, de forma que, atualmente, quase nada se produz para ser consumido mas apenas para ser vendido. Produzir para satisfazer as nossas necessidades não pode vir do capitalismo. Não resta praticamente nada da atividade humana pré-capitalista. O mundo converteu-se realmente numa mercadoria.
O capital não é uma força neutra que “orientada” convenientemente possa engendrar a felicidade da humanidade da mesma maneira que provoca a sua perdição. Não pode “descontaminar da mesma maneira que contamina”, como pretendia um cidadanista ecologista, uma vez que o seu próprio movimento o conduz inelutavelmente a contaminar e destruir, ou seja, o movimento de acumulação e de produzir para a acumulação passa por cima de qualquer ideia de “necessidade”, assim como da necessidade vital que é para a humanidade, preservar o seu meio ambiente. O capital apenas obedece aos seus próprios fins, não pode ser um projeto humano. Não existe outra “globalização”. Diante dele não estão as necessidades da humanidade, mas sim a necessidade da acumulação. Se, por exemplo, se dedica a reciclar, o ramo que se criou para esse efeito fará tudo o que for preciso para ter sempre coisas para reciclar. A reciclagem, que não é mais do que outra forma de produzir matérias-primas, cria sempre mais resíduos “recicláveis”. Além disso, contamina tanto como qualquer outra atividade industrial.
Para evitar confusões é importante esclarecer que não partilhamos a ideia um tanto paranoica que certos “radicais” difundem, segundo a qual o capital contaminaria para criar um mercado da descontaminação, ou que todo o dano causado pelo capitalismo engendraria mercados para regular esses mesmos danos, como faria um “bombeiro incendiário”. Não são poucos os danos que existem e que ninguém quer reparar simplesmente porque a sua reparação não constitui nenhum mercado. A prova disto é que a maioria das vezes os Estados devem assumir sozinhos os custos das descontaminações, o que pode conduzir a uma situação de conflito entre os Estados e as empresas, conflito que se torna visível no debate “quem contamina paga”. A verdadeira quadratura do círculo que o “capitalismo ecológico” deve resolver e o que realmente está em jogo nas “regulamentações ecológicas” é evitar os estragos e sobretudo os gastos, sem com isso afugentar os investidores.
Nunca se trata de não contaminar, mas sim de saber quem deve pagar quando a contaminação é demasiado catastrófica e visível. O suposto “mercado da descontaminação”, contrariamente ao da reciclagem, não existe realmente, já que o único benefício que se pode conseguir é o de se conformar com determinadas regulamentações e não supõe nada mais do que um encargo para as empresas, encargo que lhes convém limitar o máximo possível. Ninguém quer despoluir, como se pôde comprovar recentemente na Conferência de Haia.
Poderíamos desenvolver ainda mais este tema, mas ultrapassaríamos as intenções deste texto. De qualquer forma fica claro que não se pode planear uma gestão “humana” da produção capitalista e ainda menos seguir com a dita produção tal como se encontra. Tudo está por reconstruir. A revolução será também o momento do “grande desmantelamento” e da recuperação sobre bases inéditas da atividade humana, atualmente quase dominada por completo pelo capital.
O velho movimento revolucionário manifestava o vínculo que unia capitalismo e proletariado. Até mesmo o mais explorado dos operários podia sentir-se depositário, através do seu trabalho, de um mundo futuro no qual o trabalho dominaria o capital. O Partido era ao mesmo tempo uma família e o gérmen de um estado operário, pelo que todos os chefes sindicais se podiam sentir vinculados à comunidade operária do presente e do futuro. As transformações do modo de produção capitalista dos últimos vinte anos pulverizaram tudo isto , generalizando a separação dos indivíduos.
No transcurso da sua expansão o capitalismo teve de destruir as antigas comunidades de origem camponesas para criar a classe operária de que necessitava. E logo depois de a ter criado deve destruí-la outra vez, e fica com o problema de integrar milhões de indivíduos no seu mundo.
Os cidadanistas propõem uma resposta irrisória quando tentam reconstruir o vínculo que unia antigamente a “classe operária” mediante outro, que uniria os cidadãos, ou seja, o Estado. A vontade de reconstituir o dito vínculo através do Estado manifesta-se no nacionalismo latente dos cidadanistas. Substitui-se o capital abstrato e sem rosto por figuras nacionais, pelo bigode de José Bové ou pela reabilitação do hino czarista na Rússia (claro que neste caso não se trata de cidadanismo, mas da manifestação de um nacionalismo muito mais geral e igualmente sem nenhuma saída). Mas o Estado só pode propor símbolos e sucedâneos a esses vínculos, uma vez que ele está saturado de capital, por assim dizer, e apenas pode agitar os seus símbolos no sentido que lhe dita a lógica capitalista à qual pertence.
Propor o “cidadão” como vínculo manifesta a existência de um vazio, ou melhor, é o mesmo que dizer que incumbe agora ao capitalismo, e unicamente a ele, a tarefa de integrar esses milhares de milhões de pessoas que se encontram privadas de comunidade. E devemos constatar que, bem ou mal, até agora o tem conseguido.
No entanto, continua a perceber-se confusamente o capitalismo, como uma força exterior e hostil à humanidade, seja porque a priva de pão ou porque a priva de “sentido”. Nas sociedades capitalistas avançadas, isto manifesta-se mediante a fuga de indivíduos separados para aquilo que os sociólogos denominam “a esfera privada”, ou seja, o ócio, a família ou o que resta dela, o grupo de amigos etc. Desta forma desenvolve-se logicamente um mercado da separação, que se materializa nas ferramentas de comunicação-consumo. Mas no mundo das mercadorias, esse consumo do “estar juntos” acaba por ser um “possuir sozinho” que volta a cair na separação que se esperava que atenuasse.
O próprio trabalho, que constitui sempre a principal força de integração do capital, percebe-se cada vez mais como uma obrigação exterior e já só serve de um modo muito marginal para esboçar a identidade de indivíduos cada vez mais perdidos na massa e com cada vez mais falta de identidade própria. No momento em que as profissões desaparecem e se veem substituídas por funções que não requerem nenhuma competência particular, esta situação não é nada surpreendente. O “mundo do trabalho” também se converteu no mundo da incompetência. Algumas pessoas entendem esta dinâmica de desqualificação como algo decadente (e a dinâmica da integração mediante o capital cria os seus próprios “bárbaros” internos), mas também implica uma desmoralização do trabalho considerado por toda a gente como algo vazio de sentido, puramente arbitrário, uma obrigação exterior, uma exploração. A moral do trabalho que partilhavam antigamente burguesia e proletariado está-se a diluir no movimento da integração capitalista.
A integração capitalista (problema central que teremos de enfrentar mais à frente) percebe-se cada vez mais como algo artificial e, em todos os casos, é muito problemática e conduz ao que se poderia chamar uma neurose de massa, relacionada com o sentimento de se ter perdido todo o controle sobre a sua própria vida. O próximo movimento revolucionário não poderá iludir esta constatação já que essa impotência, que corresponde ao que se denominou noutro tempo alienação, é parte integrante da nossa relação com o mundo capitalista.
VI- “Proletários do mundo, não tenho nenhum conselho para vos dar!”
Não vamos cair no ridículo de apresentar aqui o que deverá ser o próximo movimento revolucionário. Ninguém pode afirmá-lo com certeza sem cair numa ideologia de substituição. Ainda assim, podemos imaginar a partir do que já existe aquilo que este movimento poderá ser, quer dizer, aquilo que na situação presente é o gérmen de uma situação futura.
A globalização do capital e a dissolução dos capitais nacionais implicam que se tratará de um movimento mundial, e não sob a forma caricatural de uma ação contra a OMC ou a UNCTAD (conferência das nações unidas sobre comércio e desenvolvimento) . Não se tratará de ir incendiar Frankfurt ou Bruxelas, mas de atuar contra o capitalismo tal como se apresenta aqui onde nos encontramos, porque aqui, onde nos encontramos, é onde se joga realmente a globalização. A globalização do capital é, também, a globalização da luta, e quando se decide em Nova Iorque o que se produz no México e se empacota em Pas-de-Calais (uma região do norte de França), todo o ataque local tem repercussões globais.
A dissolução da consciência de classe e do velho movimento operário têm também como consequência que cada um se encontra só na sua vida, frente à exploração e à dominação, de forma simultânea. Já não há refúgio possível, nem comunidade onde fechar-se. A identidade que cada um construía através do trabalho tende a dissolver-se e a ser progressivamente substituída pela esfera do privado, do grupo de amigos ou familiares, do ócio. Mas com a massificação do ócio, a decomposição da família e a brutalidade das relações sociais, o particular encontra-se constantemente reenviado para o geral. O homem moderno é um homem público.
Nunca, no decurso de toda a história, as pessoas se viram obrigadas a pensar-se de forma tão global, enquanto humanidade, à escala mundial. Isto é ao mesmo tempo sofrimento (pelo que se entende facilmente que alguns possam sentir-se atraídos para Zerzan (teórico neoprimitivista dos Estados Unidos) ou Kaczinski (mais conhecido como “Unabomber”) entre outras regressões) e é a condição da própria libertação. Os primitivistas querem libertar-se da humanidade, regressar à harmonia primordial da comunidade restrita e isolada. Mas tal regresso é impossível. Não há um “de fora” do capitalismo.
Em 1860, Marx ainda podia escrever em O Capital : “Para reencontrar o trabalho comum, quer dizer, a associação imediata, não temos necessidade de remontar à sua forma natural primitiva, tal como nos aparece no limiar da história de todos os povos civilizados. Temos um exemplo bem perto de nós na indústria rústica e patriarcal duma família de camponeses que produz para atender às suas próprias necessidades (…).”
Este “exemplo” desapareceu.
No entanto a atividade humana, ou quase toda, encontra-se regida pelo capitalismo, o que leva alguns- Zerzan ou Kaczinsky, e muitos outros- a sentir a falta dos “bons velhos tempos”, sejam primitivo-fusionais ou patriarcal-artesanais. Mas nenhuma destas formas de organização social conseguiu resistir ao capitalismo, pelo que nos parece muito difícil que possam constituir o seu futuro, a menos que se postule uma natureza da humanidade cuja manifestação seriam estas formas e também uma autodestruição do capitalismo (quer dizer, do mundo) numa catástrofe após a qual, ditas formas poderiam com toda a comodidade voltar a ocupar o seu lugar, momentaneamente usurpado. Mas esta “autodestruição” do capitalismo seria, também, a nossa, pelo que devemos planejar o futuro a partir do capitalismo, quer gostemos quer não.
Já vimos que a globalização dos indivíduos extravasa consideravelmente os limites do trabalho assalariado. Cada um dos aspectos da vida está submetido a esta globalização, com o que, cada um dos aspectos da vida terá que ser transformado, unitariamente. Dito de uma forma mais simples, hoje não se pode mudar nada sem mudar tudo. Esta será a principal condição da revolução vindoura.
De forma muito concreta, cada problema que herdarmos do capitalismo apenas poderá resolver-se à escala de uma sociedade inteira. Resíduos nucleares, transportes, agricultura, tudo isto nos levará a decisões e modos de organização que deverão ser tratados globalmente, fora da propriedade privada e da divisão hierárquica do trabalho. E não se tratará apenas de trabalho.
O “mundo sem fronteiras” que o capitalismo criou para a mercadoria será efetivamente um mundo sem fronteiras para a humanidade. Não haverá direitos alfandegários.
Deixaremos para mais tarde a necessidade de desenvolver tudo o que isto implica. Poderíamos também analisar o que poderiam ser as formas de organização que as pessoas adoptariam, mas a enorme quantidade de problemas práticos que podem chegar a pôr-se será tal que deverão pôr-se em prática necessariamente soluções inéditas e sem dúvida marcadas com frequência pela urgência. A iniciativa individual será, quiçá, nessa altura tão importante como o consenso, sabendo nós que os dois são insubstituíveis. O debate permanece aberto e é também com respeito a todas estas perguntas que devemos “saber esperar”.
VII- Conclusão provisória
Neste texto tentámos evocar os principais limites e debilidades do cidadanismo. Não se trata somente de limites ou debilidades “teóricas”, mas sim bastante reais e que lhe serão fatais a curto ou longo prazo.
Também não se trata de ficarmos sentados de braços cruzados, “esperando” que o cidadanismo se afunde, dando magicamente lugar à revolução. Sem dúvida que ainda restam muitos recursos a este movimento, ele é capaz de se adaptar a novas condições. Mas precisámos, aqui, quais as condições às quais se não saberá adaptar. De qualquer forma, não fizemos mais do que esboçar uma crítica que outros prosseguirão.
Outra pergunta a que tratámos de responder é a que trata da maneira, como se deve  abordar a crítica. Com demasiada frequência, alguns revolucionários criticam aqueles que consideram reformistas, com o único pretexto de que não são revolucionários. Isso é apresentar o debate como se se tratasse de um simples debate de opiniões, definitivamente iguais ou igualmente vazias: palavras ocas frente à todo poderosa realidade objetiva do mundo. Ao proceder assim pode-se defender qualquer coisa: preferir os índios de Zerzan aos cowboys de Kaczynski, o Renascimento à sociedade industrial, os proletários de boné aos jovens rappers que usam sapatilhas Nike.
O próximo movimento revolucionário também deverá falar a sua própria língua. Provavelmente não se expressará nos termos que aqui se empregam, que são os de uma certa tradição teórica. A linguagem teórica que empregamos é uma ferramenta para compreender a revolução que há de vir, mas não é essa revolução.
Deveremos sair do emprego mágico-afetivo da linguagem, que é a linguagem da alienação contemporânea, a linguagem dos que não têm nenhum poder prático sobre o mundo e que não podem, por isso, fazer outra coisa além de o sonhar. Só aqueles que não têm nenhum poder sobre o mundo podem dizer o que quer que seja sem medo de serem desmentidos, já que sabem que o seu discurso carece de consequências.
No mundo da integração capitalista, já não há nem verdade nem mentira: só sensações efémeras. E devemos deixar de ter medo da verdade. Se ocorre com frequência percebermos a vontade de dizer a verdade como uma dominação – um “fascismo”, uma vontade de hegemonia do discurso – é porque no mundo capitalista só os que dominam podem pretender dizer a verdade, já que são eles que a criam, que detêm o monopólio da “palavra verdadeira”. Mas esta verdade é tão manifestamente falsa e a nossa impotência na hora de a contestar tão esmagadora, que acabamos por ficar enojados com qualquer tentativa de procurar a verdade: por fim acabamos por duvidar da possibilidade de poder dizer qualquer coisa certa, ou seja, na medida das nossas possibilidades, tornar o mundo em que vivemos inteligível.
No arbitrário do espetáculo tudo é uma questão de “pontos de vista”. Desde “o seu ponto de vista”, cada um pode ter razão ou não, e a indiferença liberal em relação ao outro, manifesta-se no respeito por todas as “opiniões”.
O apelo “revolucionário” à subjetividade, resíduo do surrealismo e do situacionismo vaneigemista (Raoul Vaneigem) é hoje mais reacionário do que nunca, quando o próprio capitalismo apela à separação hedonista: “Sonhai, que nós faremos o resto”. Devemos, pelo contrário, falar de novo uma linguagem comum. Só poderemos realmente construir a nossa subjetividade sendo capazes, junto a outros, de captar a objetividade do mundo que partilhamos. Entender é dominar, logo poder mudar o mundo. Começar a tratar de entender é restabelecer a comunicação com o que nos rodeia, quebrar o gelo que nos separa.
Não criticámos os cidadanistas por não termos os mesmos gostos, os mesmos valores ou a mesma subjetividade… Nem criticámos os cidadanistas enquanto pessoas, mas sim o cidadanismo enquanto falsa consciência e enquanto movimento reacionário, como se disse atrás, ou seja, como movimento que contribui para asfixiar o que ainda apenas existe em gérmen. Fizemos uma crítica do movimento histórico, ou pelo menos essa era a nossa intenção.
E tanto assim é, que não duvidamos que uma grande quantidade de pessoas, enredadas nas contradições do cidadanismo, no seu louvável desejo de atuar sobre o mundo, se unirão um dia aqueles que desejem transformá-lo realmente.
Não somos nem mais nem menos “radicais” do que o momento em que nos encontramos.
Alain C.


terça-feira, 18 de agosto de 2020

IDEOLOGIA E LUTA DE CLASSES

A classe operária é ou não portadora de uma vontade e de uma capacidade de transformação revolucionária radical? É capaz de realizar à escala mundial a verdadeira comunidade humanaa humanidade social?

Posto noutros termos, qual é o sentido de mais de cento e cinquenta anos de lutas operárias, entrecortadas de vitórias exaltantes, de derrotas amargas e de retrocessos em que tudo parece definitivamente perdido, como aquele em vivemos depois do fracasso da revolução espanhola, e do qual mal saímos?
Desde a origem do capitalismo, quando a classe operária era apenas embrionária, o comunismo surgiu desde o princípio como o objetivo, o fim último, o sentido profundo e a tendência imanente das lutas operárias … No entanto, as primeiras expressões ideológicas coerentes duma teoria comunista foram obra dos “socialistas utópicos”. Saint-Simon, Fourier em França, Owen na Inglaterra foram os mais célebres. Tiveram numerosos predecessores, entre eles, o padre Meslier e Sylvain Marechal. Herdeiros da filosofia iluminista do século XVIII, não concebiam, no entanto, o comunismo como o produto da luta revolucionária dos trabalhadores, nem como a tendência inelutável da sociedade capitalista… Pelo contrário, constatavam, com o nascimento do capitalismo, os males que este causa e por conseguinte o esboroar das ilusões da filosofia iluminista, que tinha acreditado fundar sobre a razão abstrata a emancipação da espécie humana. A liberdade dos filósofos não era realmente mais do que a liberdade de os burgueses comprarem e venderem livremente, e a liberdade de os proletários venderem a sua força de trabalho. A igualdade não era mais do que uma igualdade abstrata, a aplicação a essa abstração que é a Pessoa Humana de um direito igual para todos, enquanto que na realidade se aplicava a pessoas fundamentalmente desiguais, segundo a posição que ocupam nas relações de produção. No que diz respeito à fraternidade, não era senão o véu pudico, a mistificação pela qual a burguesia nascente tentava camuflar a guerra permanente que fazem entre si os diferentes burgueses devido à concorrência e, sobretudo, o antagonismo que opõe proprietários e não proprietários, burgueses e proletários.
A divisa revolucionária: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, arma da burguesia contra o mundo feudal e o estado monárquico despótico, convertia-se imediatamente em arma da burguesia na sua guerra dissimulada ou aberta contra o proletariado.
Longe de ser sinónimo de emancipação do homem, o estado da razão, fundado pela revolução francesa, não emancipava mais do que uma magra camada da população, a camada dos proprietários, a burguesia, ao mesmo tempo que emancipava o capital de todas as peias do direito feudal. A imensa maioria caía num estado de dependência total. Era reduzida a não ser mais do que uma mercadoria no ciclo capitalista, a estar totalmente submetida aos proprietários dos meios de produção, e esta submissão ia acompanhada de uma decadência material e moral profunda e, nessa época, de uma pauperização absoluta.
“Numa palavra, comparadas com as promessas deslumbrantes dos filósofos do século XVIII, as instituições sociais e políticas estabelecidas pelo ‘triunfo da razão’ revelaram-se como caricaturas amargamente decepcionantes. Só faltavam os homens para constatar esta decepção: estes (os utopistas) chegaram com a viragem do século.” Assim, para os utopistas, testemunhas das misérias evidentes da sociedade, o Estado da Razão, fundado pela revolução burguesa, não era suficientemente razoável. A Razão que o tinha fundado não era uma razão suficiente. Em consequência empreenderam, desde o ponto de vista da razão e da justiça, uma crítica desapiedada do mundo burguês.
Desta análise crítica da sociedade burguesa empreendida em nome da razão, retiraram pela primeira vez a conclusão de que o comunismo é a única forma de sociedade “racional”, e a solução de todos os males de que padece a sociedade capitalista.
“Naquela época, todavia, o modo de produção capitalista, e, com ele, o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, não haviam saído ainda de sua fase incipiente. A grande indústria, que na Inglaterra acabava de nascer, era inteiramente desconhecida em França. E a grande indústria é a encarregada de desenvolver, por um lado, os conflitos que fazem da transformação do modo de produção, uma necessidade inelutável  – conflitos que estalam não só entre as classes engendradas por ela como também entre forças produtivas e as formas de intercâmbio por elas criadas, – e, por outro, as gigantescas forças produtivas, que oferecem os meios para resolver esses conflitos. No princípio do século os conflitos, que brotavam da nova ordem social, começavam apenas a crescer e ainda mais, naturalmente, os meios para os resolver. Se as massas desprotegidas de Paris conseguiram apossar-se, por algum tempo, do poder, durante o regime do Terror, foi somente para demonstrar até que ponto era impossível manter esse poder nas condições da época…
Essa situação histórica dominou também as doutrinas dos fundadores do socialismo. Suas teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado incipiente da produção capitalista, a embrionária situação da classe. Queria tirar do cérebro a solução dos problemas sociais latentes ainda nas condições económicas embrionárias da época. A sociedade não continha senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se de descobrir um novo sistema, mais perfeito, de ordem social, a fim de impô-lo à sociedade, de fora para dentro, por meio da propaganda, e, se possível, pregando-o com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelos de conduta. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos mais haveriam de degenerar, forçosamente, em puras fantasias.” (“Anti-Dühring”)
Engels cita depois abundantemente as intuições geniais contidas nos escritos dos socialistas utópicos e que o socialismo científico desenvolverá posteriormente.
Poderia parecer, visto isto, que a teoria revolucionária, a consciência comunista, foi elaborada exteriormente ao movimento operário, por intelectuais que a levam depois à classe operária, e isto desmentiria, então, a nossa afirmação preliminar segundo a qual: “o comunismo surgiu desde o princípio como o objetivo, o fim último, o sentido profundo e a tendência imanente das lutas operárias”.
Isto é uma ilusão perigosa. E é geralmente através desta concepção falsa que as concepções idealistas da ideologia burguesa penetram na teoria revolucionária juntamente com todos os desvios que o jargão consagrado qualifica de voluntarista e oportunista. (Voltaremos a isto.)
Pareceria assim que, contrariamente à tese central de Marx: “não é a consciência dos homens que determina a sua existência, é a sua existência social que determina a sua consciência”, a consciência comunista elaborada no exterior por pensadores especializados, ou, se quiserem, a teoria revolucionária, a linha justa, a consciência de classe, importada de fora para dentro do proletariado, modificaria a sua existência, ou seja, a sua prática real, desde que ALGUÉM o levasse a assimilá-la.
Analisemos, então, para resolver este enigma, qual é a relação real entre o nascimento das teorias socialistas crítico-utópicas, e o movimento real da história e da classe operária.
A ideia segundo a qual as teses fundamentais do comunismo teriam nascido no cérebro dos pensadores utopistas e levadas depois aos trabalhadores não é senão uma ilusão de óptica. Certamente, é dessa maneira que os próprios utopistas concebem a sua relação com a classe operária e a história, mas trata-se duma pura e simples inversão ideológica da realidade. A relação real é outra. Com efeito, nunca uma ideia ou invenção foi produto dum cérebro isolado, ou de um ou vários pensadores especializados. A produção de ideias é um processo eminentemente social. O surgimento de uma ideia nova no cérebro de um indivíduo está condicionado ao mesmo tempo pelo conjunto da produção cultural e ideológica da época, histórica e socialmente condicionada, e pela história desse indivíduo, a totalidade da sua experiência humana, tomada em todas as suas determinações concretas, de onde derivam por sua vez a sua estrutura psíquica e própria do seu carácter, a sua perspectiva e a sua posição na circulação e produção do stock social de ideias, de conceitos, de informações ou preconceitos, no qual bebe e a partir do qual trabalha. (E numa sociedade de classes, as determinações concretas do seu ser social estão condicionadas pela sua situação nas relações de produção.) A produção de uma ideia, de um conceito, de uma ideologia ou de uma teoria implica sempre a colaboração informal de uma multidão de produtores anónimos e que permanecerão sempre ignorados, da mesma maneira, por outro lado, que a produção de um automóvel.
Mas sobretudo, para que os utopistas efetuassem a sua análise crítica tão contundente da sociedade burguesa também fazia falta que a sociedade burguesa existisse, e para que a sua análise fosse crítica, era necessário que as contradições e as taras desta sociedade se tivessem manifestado. E, como se manifestam estas taras senão pela luta daqueles que as padecem? A irracionalidade da sociedade burguesa, o fracasso do humanismo burguês e a inumanidade da condição proletária, foram vividos previamente pelo proletariado antes de ser pensados e teorizados. E são as greves, as revoltas e os motins o que atraiu a atenção dos pensadores sobre a irracionalidade do sistema; não são os pensadores os que atraíram a atenção dos proletários sobre a inumanidade da sua condição.
Não existe nenhum meio de saber se as condições de existência dos elefantes na selva indiana não são elefantinas se os elefantes não o manifestarem por uma revolta, ou (pelo menos para os elefantes) pela lenta desaparição da espécie.
Assim, longe de ser o produto do cérebro de alguns intelectuais, as ideias socialistas e comunistas foram previamente o produto da luta da classe operária, que primeiro segregou suas ideias de maneira anónima e informal para dar conta da sua situação e da sua luta. A partir destas ideias produzidas social e coletivamente, os utopistas trabalharam e elaboraram o seu sistema. Estas ideias estavam, muito antes dos utopistas, muito vivas no proletariado que, precisamente porque mal acabava de sair das relações feudais (corporações) ou pré-capitalistas (campesinato), sentia com uma agudeza e uma clareza muito maior que nos nossos dias o escândalo do salariado, e o avassalamento que significava o facto de ser um trabalhador livre, quer dizer, juridicamente livre de todos os laços servis ou de grémio, e livre, portanto, de vender a sua força de trabalho a quem a quisesse, mas livre também de tudo, isto é, despojado de tudo e por conseguinte, separado dos meios de produção convertidos em capital nas mãos do seu possuidor. Poder-se-ia demonstrar facilmente, nisso a que se convencionou chamar “cultura popular” e particularmente nas canções de ofícios que o nascimento do salariado é vivido pelos proletários como um escândalo e um desenraizamento, e que imediatamente apareceu a necessidade de pôr fim a este desarraigamento por meio da reapropriação dos meios de produção. A comparação possível com uma situação anterior muito próxima e que continuava estando ainda amplamente presente na sociedade permitia captar imediatamente a diferença, muito melhor do que hoje em dia em que o salariado acabou por ser vivido como natural. É esta consciência difusa o que constitui o ponto de partida e a condição da possibilidade do comunismo crítico-utópico. Os sistemas socialistas não são mais do que a cúpula de um edifício ideológico cuja base e alicerces foram construídos por um trabalho ideológico dos próprios trabalhadores com base na sua experiência proletária, mas à medida que o edifício se eleva, novos artesãos contribuem com as suas preocupações e pontos de vista diferentes. Esqueceu-se por quem e em que condições se tinha construído a base do edifício. No cimo, alguns artistas vieram esculpir as estátuas, algumas das quais são belas, mas eles assinaram, pondo assim a marca da burguesia sobre o que não era senão o produto da luta de classes.
No entanto, isto não significa que estes sistemas ideológicos são produzidos directamente pela luta de classes e não são mais do que o reflexo do mundo objetivo e material, como afirma o materialismo primitivo criticado por Marx (teses sobre Feuerbach, entre outras) e no qual incorre o marxismo degenerado[1], ou que os ideólogos não seriam mais do que porta-vozes das diferentes classes, ou uma espécie de caixa de ressonância de ideias existentes já acabadas fora deles e saídas não se sabe de onde ou ainda “refletindo” o mundo material não se sabe por que processo. As ideias, as teorias, são o produto da actividade humana, do trabalho humano, não um reflexo passivo, e que transforma, pois, uma matéria-prima num produto humanizado, experiências e sensações em conceitos, organiza os conceitos, transforma-os, etc.
Mas o proletariado não esperou que pensadores especializados, beneficiando-se da sua cultura burguesa, cheguem à conclusão teórica, graças ao seu trabalho específico, de que a fonte de todos os males da sociedade era a apropriação privada dos bens, e que esta apropriação privada devia ser abolida e o comunismo instaurado… Desde que o proletariado existe, quer dizer, uma classe de homens livres que não possuem para viver mais do que a sua força de trabalho e constrangidos, pois, a vendê-la a troco de um salário aos possuidores dos meios de produção, ele manifestou com seus atos (portanto, a consciência prática, a única que nos interessa) o juízo inequívoco que pronunciava contra a propriedade privada, e a sua tendência espontânea (já que é conforme ao seu ser) de apropriar-se pela violência, e sem outro tipo de processo, daquilo de que era defraudado: as condições de trabalho, os meios de produção, mercadorias, dinheiro. Encontra-se não só a manifestação desta consciência prática, desta consciência em ato, e um princípio de expressão ideológica nas greves e motins operários desde o começo do século XVIII, mas mesmo durante o feudalismo e na antiguidade, na medida em que existiam no interior destas sociedades dominadas por relações feudais, escravagistas ou de tipo asiático sectores extremamente limitados nos quais o salariado se tinha desenvolvido.
O proletariado não tem nenhuma necessidade de ir aprender aos livros, mesmo que sejam “marxistas”, para saber identificar os seus inimigos, basta-lhe estar exposto a eles.
“O proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e poderoso, o seu antagonismo à sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa exatamente lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses, isto é, na consciência daquilo que é a essência do proletariado. A própria ação traz este carácter superior. Não só são destruídas as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os livros comerciais, os títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam primeiramente contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento volta-se também contra o banqueiro, o inimigo oculto.” (Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”, Marx)
Isto não significa que o proletariado teria necessariamente e através de não se sabe que mistério, a “ciência infusa”, nem que possua uma teoria clara e adequada dos fins e dos meios. Pois o comunismo não é “o que pensa este ou aquele proletário, ou mesmo o que o proletariado no seu conjunto imagine ser o seu objetivo momentaneamente, mas sim o que, em conformidade com o seu ser se verá constrangido a fazer”.
O comunismo não é, pois, um “projeto” ou um “programa” de transformação social trazido de fora, nem sequer criado ideologicamente pela própria classe operária e aceite no seu conjunto, o comunismo é o produto espontâneo, a lógica imanente, interna da sua luta.
É esta luta o que constitui o fundamento e a única fonte de toda a teoria revolucionária, por muito abstrata e geral que seja.
Deste modo, é o SER DO PROLETARIADO, sem nenhuma mediação, o que funda histórica e teoricamente o comunismo. Da mesma maneira, por outro lado, é o ser da burguesia, e não a Razão, quem histórica e praticamente fundou a sociedade burguesa. Com efeito, “quando se estudam as transformações deste género (as transformações sociais) há que distinguir sempre entra a transformação material que se opera nas condições económicas da produção… e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas através das quais os homens tomam consciência deste conflito e se esforçam por resolvê-lo.” (Prefácio da Crítica da Economia Política.)
O proletariado não denuncia a sociedade capitalista desde o ponto de vista da Razão, denuncia-a, pela sua prática, desde o ponto de vista do seu ser; e quando exprime conscientemente esta denúncia, o que não é “mais que a forma ideológica através da qual toma consciência do conflito”, não faz senão enunciar o que é e o sentido do que faz.
“Quando o proletariado denuncia a dissolução da ordem social atual, não faz mais que enunciar o segredo da sua própria existência: pois ele mesmo constitui a dissolução desta ordem social…” (Marx: Crítica da filosofia do direito de Hegel.)
Mas antes de ver que é este o SER DO PROLETARIADO, e portanto, o movimento que o empurra inelutavelmente a destruir a sociedade capitalista, e por este mesmo movimento, a criar outras relações de produção, por conseguinte, outras relações entre os homens e entre os bens produzidos por eles: o comunismo, voltemos atrás e analisemos o significado da inversão ideológica que acabamos de mostrar.
Assim, vimos que o comunismo crítico-utópico não era mais do que o produto ideológico do desenvolvimento da sociedade capitalista e dos seus antagonismos, portanto, o produto indireto das lutas operárias; mas que a teoria, o sistema ideológico não era consciente ele próprio desta relação de que acabamos de indicar apenas as mediações.
Vejamos para começar, quais são as consequências disto para a própria teoria.
Pelo simples facto de que não é consciente desta relação, a teoria compromete-se e afunda-se na especulação. Excetuando algumas intuições geniais, este “comunismo” converte-se em pura abstração e fantasia, bem incapaz de comprovar na prática “a realidade e a potência, a materialidade do seu pensamento”.
Por via desta separação a teoria torna-se falsa. Poder-se-ia submetê-la a ela mesma, à crítica, crítica, e mostrar que os seus “projetos” são ao mesmo tempo irrealizáveis e estão minados por contradições insuperáveis que, por outro lado, a prática se encarregou de demonstrar, com a falta de respeito habitual que tem pelas ideias. Os projetos da comunidade comunista, de falanstérios, etc., esboçados pelos utopistas, ou nunca viram a luz do dia porque não existiam condições para a sua criação e mal suscitavam a adesão dos trabalhadores, ou então, na medida em que foram realizadas algumas tentativas, faliram sob a pressão de contradições externas e internas.
Mas vejamos agora quais são as consequências práticas, para o movimento revolucionário, deste erro teórico fundamental: esta incompreensão da relação real entre a teoria e o movimento da história.
A “ideologização” da teoria não só é mortal para a teoria, é contrarrevolucionária na prática, já que desemboca necessariamente em retirar ao proletariado a iniciativa histórica, para situá-la noutro lugar. A separação da teoria desemboca sempre na teoria da separação, e fundamenta teoricamente esta separação.
Desta maneira, em que desembocam as concepções dos comunistas utópicos, mesmo sendo o produto indireto da luta de classes? Em vez de dizer aos proletários: “Continuai a vossa luta desapiedada, e que só agora começou, contra a sociedade burguesa, contra o capital e a mercadoria sob todas as suas formas, e contra o Estado burguês, que não é mais do que o seu defensor e o sua última garantia. As nossas análises teóricas, para as quais utilizámos o máximo de materiais que oferece a cultura burguesa, provam não só que a vossa luta é justificada, que é a única via possível para os trabalhadores, coisa que vós já sabeis, mas também que os meios de luta que criastes, a greve, o motim, a insurreição armada, são os melhores, de qualquer maneira nós não encontrámos nada melhor, e ao atuar assim não só vos emancipais vós mesmos mas também toda a humanidade, pelo que nós pomos as nossas forças ao serviço do vosso programa”.
Em vez de empregar esta linguagem, empregam exatamente a linguagem inversa: “Proletários, compreendemos as vossas lutas e por vezes admiramos o vosso heroísmo, no entanto somos obrigados a dizer-vos que estais no caminho errado, chocais contra a sociedade e o Estado como uma borboleta contra o vidro, esbanjais inutilmente as vossas forças, as nossas análises teóricas permitem-nos dizer-vos que deveríeis proceder doutra maneira…” As receitas mudam em cada caso. Para os utopistas, tratava-se essencialmente da criação de comunidades comunistas, falanstérios etc., de onde a propriedade privada, e, portanto, a lógica mercantil, era desterrada por regras formais de funcionamento.
Deste modo, toda a teoria que deixa de ser a teoria do movimento real da história, por conseguinte, na nossa época, do desenvolvimento da sociedade capitalista, e da luta da classe operária contra o Capital, degenera ipso facto em ideologia e exprime interesses opostos, ou pelo menos, estranhos, ao proletariado. Torna-se evidente que o desenvolvimento de uma ideologia assim não depende simplesmente duma falta de capacidades teóricas, duma falta de argúcia na análise, exprime, pelo contrário, um ponto de vista particular sobre a sociedade e a história, portanto uma posição particular na sociedade e na história, separada e que se pensa como separada do proletariado.
Isto não é válido apenas quando do nascimento do movimento operário, no momento em que os antagonismos de classe estavam pouco desenvolvidos quantitativamente (já que qualitativamente o antagonismo Capital -Trabalho é invariável enquanto exista salariado), isto constitui uma constante permanente do movimento operário, e esta análise é a pedra de toque que permitirá descobrir o ouro da teoria revolucionária no meio das diversas mercadorias ideológicas propostas para consumo das massas. Este método permitirá sobretudo comprovar o carácter revolucionário das teorias e organizações até aos nossos dias, e compreender como uma teoria, por muito revolucionária que seja, cai na ideologia, e, portanto, deixa simultaneamente de ser científica e revolucionária.
A concepção que acabámos de expor, na que não fazemos outra coisa senão parafrasear Marx e Engels, opõe-se radicalmente às concepções revolucionárias de Lenine e às suas versões degeneradas, chamadas de leninistas. Para Lenine, com efeito, que repete quase palavra por palavra em ” As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo” (Março de 1913), o texto de Kautsky: ” As três fontes do Marxismo” (1908), o comunismo já não é o produto orgânico, necessário, do próprio movimento da sociedade capitalista e da luta revolucionária do proletariado que resulta dele, o “Comunismo”, a “teoria socialista” é o produto duma CRÍTICA teórica da sociedade capitalista e a sua forma mais elaborada, o marxismo, seria então o produto da síntese efetuada por Marx, das ciências naturais e psicológicas, por um lado, e do pensamento alemão, do pensamento francês e do pensamento inglês, por outro.
Esta síntese é concebida como um movimento interno do pensamento, devida à dinâmica da inteligência.
Para Kautsky, as ciências burguesas, tinham chegado a um nível de desenvolvimento muito alto, mas tropeçavam com um certo número de problemas… então veio Marx. Viu que a história é o resultado de… (sic, As três fontes, pág 9, continua)
Certamente, Kautsky apela cordialmente à “União do movimento operário e do socialismo”, é o título do 4º capítulo do seu folheto. Lenine também: é o assunto de “Que fazer?” e a meta de toda a sua vida.
Muito amável da parte deles! Já que para eles: ” O movimento operário e o socialismo não são de modo nenhum idênticos por natureza” (Kautsky, op. cit.). Tanto para um como para o outro: “a forma original do movimento operário é puramente económica” (Kautsky, op. cit.) enquanto que “o socialismo pressupõe um conhecimento profundo da sociedade moderna” (Kautsky, op. cit.), o que Lenine desenvolve em “Que fazer?”; falando das greves de 1886-90: “Os operários não podiam ter ainda a consciência social-democrata que apenas podia ser-lhes levada do exterior… A história de todos os países testemunha que, entregue às suas próprias forças, a classe operária pode apenas atingir uma consciência sindicalista (…), etc. Quanto à doutrina socialista, ela surgiu das teorias filosóficas, históricas, económicas elaboradas por certos representantes instruídos das classes possuidoras, os intelectuais. Pela sua situação social, os fundadores do socialismo, Marx e Engels, eram intelectuais burgueses. Da mesma maneira, na Rússia a doutrina social-democrata surgiu independentemente do crescimento espontâneo do movimento operário; foi o resultado natural e fatal do desenvolvimento do pensamento nos intelectuais socialistas revolucionários”.
Assim, tal como Kautsky, Lenine vê no marxismo, ou consciência “social-democrata”, um produto ideológico. Declara mesmo que esta produção é obra específica de intelectuais revolucionários que, seguramente, escolheram o campo da classe operária, mas que são os únicos capazes de chegar a uma consciência revolucionária, graças à crítica teórica que fazem do capitalismo, a partir dos elementos que a cultura burguesa da qual são depositários, ou pelo menos, aquela à qual têm acesso, lhes fornece.
Isto parece conter, pelo menos, uma verdade histórica evidente: o papel de intelectuais não operários, em particular de Marx, mas também de muitos outros… na elaboração da teoria revolucionária. Mas esta concepção é totalmente idealista. Por um lado, apoia-se na ilusão de que a consciência revolucionária é produzida por um cérebro individual (ou alguns cérebros); por outro lado, não se põe a questão elementar: esta consciência, é consciência DE QUÊ?  Portanto a frase do “Que fazer?”  “entregue às suas próprias forças, a classe operária pode apenas atingir uma consciência sindicalista”, é na realidade apenas a ideia que o vulgo tem sobre o movimento da classe operária. Esta formulação é espantosa, já que estamos no direito de nos perguntarmos A QUEM tem que entregar-se a classe operária para atingir uma consciência comunista, e DE ONDE vem essa consciência? Esta formulação contradiz, além disso, as teses de Marx e Engels, que demonstravam, pelo estudo dos movimentos insurreccionais do proletariado, que a classe operária não esperou por Lenine, nem por eles próprios, para elevar-se à consciência prática da necessidade do comunismo.
A resposta que dá Lenine, depois de Kautsky, a esta inquietante “constatação” é ainda mais assombrosa. Para Kautsky e Lenine, a teoria, a consciência revolucionária, é lhes levada do exterior, pelos intelectuais burgueses.
Esta concepção opõe-se radicalmente à crítica efetuada por Marx do idealismo, e de todo o materialismo passado, inclusive o de Feuerbach (Teses sobre Feuerbach, 1 e 3), enquanto que “esquece que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade”.
Poder-se-ia prosseguir parafraseando a continuação da tese nº 3. “Lenine e Kautsky não compreendem que a coincidência do mudar das circunstâncias e do mudar da actividade humana –ou a modificação de si mesmo – só pode ser concebida e racionalmente entendida como prática revolucionária.”
Com efeito, Marx não opõe de uma maneira abstrata a realidade, o mundo objetivo, por um lado, a consciência, o mundo subjetivo, por outro, e a actividade prática que as liga. Pelo contrário, concebe-as numa totalidade, e demonstra que estas categorias, objetivo-subjetivo-atividade prática, concebidas de um modo abstrato de outra maneira que como momentos de uma mesma totalidade, são o produto dum pensamento petrificado, produzido por sua vez por uma sociedade de classes, em que a actividade humana está efetivamente cindida pela divisão do trabalho.
Se seguimos a concepção de Marx, é simplesmente absurdo pensar que a consciência possa ser elaborada no exterior (ou pelo menos, uma consciência elaborada no exterior é uma consciência abstrata, uma consciência de espectador, despojada de eficácia prática) e igualmente absurdo pensar que a consciência possa ser introduzida desde o exterior pela propaganda[2]; no entanto, é a pretensão de Kautsky e Lenine, que se concebem a si mesmos como os educadores da classe operária, antes de que os avatares da história façam de um, ministro, e de outro um chefe genial, sorte pouco invejável, tão uma como a outra, para quem se reivindica da teoria proletária.
A teoria leninista do partido resulta logicamente da sua concepção de teoria e das suas relações com o movimento espontâneo da classe. Daqui resulta inelutavelmente que se revolucionários profissionais se unem à classe operária, não pode ser senão para dirigi-la (no sentido dirigente-chefe, e não só de “boa direção”, pois a teoria permite efetivamente cimentar a “boa direção”, mas precisamente esta “boa direção” inclui a liquidação dos “dirigentes” pelos meios apropriados à resistência que apresentem).
Vê-se por isto o que motiva a moda da concepção leninista do partido entre os nossos modernos “leninistas”. Mesmo quando esquecem mais ou menos grande parte de outros aspectos do leninismo –em particular, as suas teses revolucionárias – ao defender a teoria do “papel dirigente do partido” apenas defendem o seu poder real (de Brejnev a Waldeck-Rochet, passando por Gomulka e Mao) ou o seu poder mítico (trotskistas ou maoístas em França).
Então esta concepção desemboca na necessidade de construir um partido revolucionário, destinado a dirigir a luta do proletariado pelo bom caminho, que o proletariado seria incapaz de encontrar por si mesmo. Isto desembocará, portanto, em desviar os elementos mais combativos do proletariado para este trabalho de Sísifo, e a afastá-los das suas tarefas reais. O critério determinante deixará de ser a luta de classes em si mesma, à qual cada trabalhador está vinculado pela sua situação, mas a “construção da organização e da direção“. A luta de classes é concebida apenas como uma revolta elementar, à qual só o partido dará sentido. Esta concepção priva, pois, tanto o comunismo como a teoria revolucionária do seu fundamento, para colocá-lo nas capacidades dos seus dirigentes. As lutas operárias passam a ser só um meio para reforçar a organização, e nos casos mais delirantes, pretender-se-á mesmo construir o socialismo sem ou contra o proletariado. Privada do seu fundamento, a teoria revolucionária nada na abstração e na metafísica. O comunismo não é já o resultado prático das lutas revolucionárias da classe operária, mas define-se em nome duma racionalidade abstrata, diferente consoante os casos e a posição prática dos autores, mas de qualquer maneira, já não é o “movimento real que abole o estado de coisas existente“, ou não unicamente.
Antes de analisar os absurdos a que podem conduzir, em Lenine, as concepções desenvolvidas previamente por Kautsky, e sem pretender fornecer, no marco deste artigo, uma apreciação global da obra de Lenine, que não se reduz às teses do “Que fazer?” nem às do “Materialismo e Empiriocriticismo“, vejamos no que está equivocada esta concepção, na sua própria raiz: a teoria da origem da consciência socialista desenvolvida nas Três Fontes.
Contrariamente à afirmação sumária de Kautsky: “Foi assim que (Marx e Engels) criaram o socialismo científico moderno pela fusão de tudo o que o pensamento inglês, o pensamento francês e o pensamento alemão tinham de grande e fértil”, repetida por Lenine:” A sua doutrina (de Marx) nasceu como a continuação direta e imediata da dos maiores representantes da filosofia, da economia política e do socialismo… O marxismo é o sucessor natural de tudo o que a humanidade criou de melhor no século XIX, na filosofia alemã, na economia política inglesa e no socialismo francês”, a teoria de Marx NÃO É o produto de síntese, mesmo dialética, do socialismo francês, da economia inglesa e da filosofia alemã, quer dizer, a síntese ideológica de três sistemas ideológicos criados pela burguesia.
Com certeza, Marx utilizou amplamente estas fontes e não deixa de sublinhá-lo ele mesmo, mas também consagrou uma obra volumosa[3] – oito volumes na edição francesa – para indicar, paralelamente ao que utilizava delas, a ruptura radical que o separava dos teóricos burgueses da economia política, e explica-o no livro I do Capital. Passou a maior parte da vida lutando teórica e politicamente contra o “socialismo francês“. Quanto à filosofia alemã, não julgou necessário publicar, vivendo ainda, uma obra comum com Engels na que e através da qual ambos efetuavam uma ruptura radical com o seu passado filosófico comum. Não julgaram necessário publicar A Ideologia Alemã porque consideravam esta obra como um simples testemunho de uma evolução pessoal, e porque consideravam esta ruptura como a condição e o ponto de partida da teoria revolucionária.
Inédita enquanto viveu Lenine, A Ideologia Alemã constitui em todo o caso a refutação a posteriori da interpretação de Lenine e de Kautsky sobre o ponto que nos interessa no presente.
No entanto, é instrutivo observar que o movimento operário não necessitou da publicação d’ “A Ideologia Alemã” para fazer a crítica prática e teórica das posições de Lenine, desde o seu nascimento. Trotsky, particularmente no seu texto Nossas Tarefas Políticas, mas também em textos como Balanço e Perspectivas e Informe da Delegação Siberiana, ou no texto menos desconhecido intitulado 1905, efetua uma crítica das posições bolcheviques e recupera os temas, e às vezes até mesmo as formulações, de Marx.
O facto de que o próprio Trotsky tenha acreditado, por oportunismo táctico, dever minimizar a partir de 1917 as divergências que o opunham a Lenine entre 1901 e 1916, não altera nada. Por mais que as diversas variedades de trotskistas ocultem sistematicamente estes textos e não os tenham publicado jamais em francês, eles constituem a contribuição principal de Trotsky para a teoria revolucionária. A sua tradução e publicação, (por não-trotskistas) é uma consequência direta do Movimento de Maio em França. Eis aí o que dá para refletir acerca das relações entre o movimento do pensamento e a luta de classes.
Dito isto, não é menos certo que Marx e Engels e todos os teóricos revolucionários sem excepção beberam abundantemente nas fontes da ciência burguesa. Mas Kautsky e Lenine utilizam este fato, esta constatação evidente, fenomenológica, sem ser capazes de penetrar no seu mecanismo e no seu significado profundo, e tentam fundamentar o papel de elementos exteriores à classe operária na elaboração da doutrina, exteriores tomado em sentido amplo, quer dizer, não só exteriores “por casualidade” – constatamos que estes intelectuais não são operários – mas também exteriores por essência de certa maneira, quer dizer, utilizando elementos que, por natureza, não são nem podem ser elaborados pela classe operária. Com efeito, como vimos, o “Socialismo Francês” é apenas a formação ideológica pela qual se exprimem as lutas nascentes da classe operária francesa, de maneira mistificada. O que Marx encontra no socialismo francês não é mais do que a forma pela qual se manifesta a Realidade da luta de classes, e só poderá utilizá-lo com proveito na sua produção teórica depois de o submeter à crítica e ter alcançado através dela o que constituía o seu fundamento inconsciente: a luta proletária nas suas determinações concretas. O que esta luta enfrenta é a realidade da sociedade burguesa, da economia capitalista, da qual a ciência económica burguesa, através de Smith e Ricardo, é a formação ideológica mais desenvolvida, pela qual a burguesia toma consciência do seu próprio sistema. À medida que a luta proletária se desenvolve, encontra a realidade capitalista e experimenta-a na sua totalidade, necessita, pois, de uma teoria “científica”, pela qual exprime a sua experiência e toma consciência da sua prática. Esta teoria é uma formação ideológica, o produto de um trabalho ideológico, mas não uma ideologia, no sentido em que ela mesma é consciente da raiz prática das suas “ideias”.
É evidente que a elaboração desta teoria beberá abundantemente (Marx não deixa de sublinhá-lo através de numerosas citações) da ciência económica burguesa, da mesma maneira que o proletariado, apropriando-se e para apropriar-se ao mesmo tempo de seu ser genérico, do conjunto da vida social, e dos produtos da actividade humana presente e passada –que não existe na sociedade capitalista a não ser sob a forma de capital oposta a ele – se apropria ipso facto da totalidade da cultura humana, mas de outro modo. Mas esta ciência burguesa não será utilizável a não ser ao preço duma inversão completa de sua perspectiva.
Esta relação é ainda mais clara na utilização que Marx fez do que se convencionou chamar “A filosofia alemã”, e especialmente a filosofia de Hegel. Incapaz de alcançar a realização política do seu Ser, como a burguesia francesa através da Revolução francesa, e incapaz de alcançar a realização económica, como a burguesia inglesa, através da formidável expansão do capitalismo inglês no século XIX, na Alemanha retalhada política e economicamente, travada em todos os planos, no seu desenvolvimento, por resíduos feudais, os quais tenta sacudir, a burguesia alemã alcançará o desenvolvimento ideológico mais elevado através da produção de sistemas filosóficos e da vida intelectual crítica. Incapaz de varrer os obstáculos na prática, fundamenta, com Hegel, a necessidade do seu devir, ou mais exatamente, do seu porvir, na filosofia da história, concebida como desenvolvimento do espírito, da ideia, que se realiza finalmente, no fim da história, representação ideológica do reino da burguesia, através da dialética histórica, na qual o espírito se perde e se volta a encontrar encarnando-se no mundo. Sem querer aprofundar sobre um sistema que toda a apresentação sumária empobrece ao ponto de o fazer parecer irrisório, digamos que o sistema de Hegel é, em primeiro lugar, a História pensada. É mesmo a criação do espírito mais notável e acabada para “pensar a História”, na medida justamente em que o seu método dialético lhe permite superar os falsos problemas e as antinomias do pensamento dualista e metafísico; em particular, o do determinismo e da liberdade.
Tendo em conta que o sistema hegeliano é uma tentativa para apreender o movimento real da História, os elementos do método, assim como os conceitos produzidos para pensar a história são utilizáveis pela teoria proletária, ainda que o próprio Hegel, e todo o seu sistema, tenham permanecido no terreno do idealismo e da burguesia, da mesma maneira que certos conceitos e elementos de método, criados por Smith e Ricardo para dar conta dos fenómenos económicos são perfeitamente utilizáveis, sem que seja necessário reinventá-los a partir do zero. Mas seria um erro completo, cometido, no entanto, por Kautsky e Lenine, mesmo tendo-se Marx explicado amplamente, acreditar, sob pretexto de que uma parte dos materiais são os mesmos, que a teoria revolucionária não é mais do que uma continuação da teoria burguesa, ou mesmo o seu auge, como se o “desenvolvimento fatal do pensamento” conduzisse a conclusões socialistas ante as quais os pensadores burgueses teriam recuado. Da mesma maneira que as mesquitas de Tunes, construídas sobre as ruínas dos templos greco-romanos utilizando os seus blocos de mármore, não são a continuação e o acabamento do templo e supõem, muito pelo contrário, a destruição do templo para existir.
Da mesma maneira, os melhores produtos do pensamento burguês não só devem ser despojados de uma ganga idealista que mancharia esta fase do pensamento humano em desenvolvimento, mas também ser transformados totalmente em sua própria estrutura e integrados num novo conjunto, ainda que o proveniente tal como o subministra o pensamento da classe precedente é acessório para compreender a nova perspectiva e a nova construção. Pois não há só “fases” num pensamento “humano” em desenvolvimento, há rupturas radicais entre modos de pensar diferentes, porque mantêm com a realidade relações e funções diferentes. Deste modo, há o pensamento antigo, feudal, burguês, proletário (entre outros), o pensamento sucessivo (que nega superando), que integra ou não integra o pensamento precedente. (Assim o pensamento burguês integra, superando-o, o pensamento feudal, reencontra e integra o pensamento clássico, o pensamento feudal perde o pensamento antigo, o que não quer dizer que o pensamento antigo se perde totalmente, pois a sociedade feudal não forma e não pode formar uma totalidade coerente. A Igreja, mesmo “feudalizada”, que lhe é coextensiva, não é redutível ao feudalismo, a mercadoria que a atravessa e vive em seus poros é-lhe antagónica.)
Mas a passagem de um ao outro, do pensamento antigo ao pensamento feudal, da mesma maneira que a passagem do socialismo francês, da economia inglesa, da filosofia alemã, à teoria revolucionária, não é um processo interno do pensamento. A possibilidade desta passagem está condicionada pela modificação da relação entre o homem e a natureza, o homem e o trabalho, dito de outro modo, já que se trata de uma sociedade de classes, pelo desmoronamento das relações de produção e o surgimento duma nova classe que, pela sua posição nas relações de produção, lança sobre a natureza, a história, o trabalho (ou a linguagem matemática) um olhar diferente. Ou mais exatamente, mantém com a natureza e a actividade produtiva humana sob todos os seus aspectos uma relação diferente. A condição para a reviravolta operada por Marx, a partir, é certo, de elementos fornecidos pela ideologia burguesa, para fundamentar uma nova concepção do mundo, tem o seu fundamento e raiz na existência prática do proletariado e na crítica prática que este faz da sociedade burguesa. Para que Marx efetuasse, no plano teórico, a superação da antinomia legada pelo pensamento burguês entre materialismo e idealismo, antinomia produzida por sua vez pela cisão real introduzida na actividade humana pela aparição da sociedade de classes e pela ruptura da comunidade primitiva, era ainda necessário que existisse uma classe que fosse, em seu próprio ser, a solução prática desta antinomia. O Proletariado pode dar a esta contradição uma solução prática porque une na sua atividade fundamental (o trabalho) o pensamento e a matéria, a “modificação da consciência e a modificação da matéria” (ou das “Circunstâncias” na tese nº 3, isto é, do mundo objetivo), categorias que são pensadas como separadas pelo pensamento burguês, porque são efetivamente separadas pela burguesia.
A história do pensamento antes de Marx era efetivamente caracterizada pela oposição irredutível entre o pensamento, o espírito, a ideia, por um lado, e a matéria, o mundo objetivo, por outro. Para o idealismo, o movimento interno do pensamento, da ideia, do espírito, é o motor do movimento. O pensamento toma consciência do mundo objetivo e, pelo seu próprio trabalho, produz o movimento. Para o materialismo, pelo contrário, é o mundo material, objetivo, o que, pelo seu próprio movimento, arrasta o movimento do pensamento, que “toma consciência” dele e reflete-o. A atividade produtiva humana é a solução em ato desta antinomia. Pensamento e ação, teoria e prática são momentos indissociáveis desta actividade. Sem teoria, nenhuma prática, mas sem prática, nenhuma teoria. O trabalho, a relação do homem com a natureza, é ao mesmo tempo o meio pelo qual o homem transforma o mundo objetivo e o produz, e é o meio pelo qual se transforma e se produz a si mesmo. Há coincidência da modificação do pensamento e da matéria. O pensamento puro não é uma relação humana com a matéria. É a relação do homem castrado de sua atividade propriamente humana, do homem espectador de um mundo que não consegue transformar.
Poder-se-á medir o retrocesso teórico de Lenine, particularmente em Materialismo e Empiriocriticismo. Nesta obra, Lenine polemiza com Mach, cujo idealismo denuncia. Para isso, pega nos pontos mais fracos, e incontestavelmente idealistas de Mach, para liquidar os elementos mais importantes. Este procedimento de baixa polémica está totalmente ausente na obra de Marx, que sublinha, pelo contrário, inclusive nos seus piores adversários, os aspectos positivos. Já que o problema de Marx nunca é liquidar um adversário, mas, pelo contrário, apropriar-se em profundidade do pensamento do seu adversário, e liquidar não o adversário, mas, nas suas ideias, o idealista ou o reacionário. Poder-se-ia inclusive sustentar que Mach, apesar do seu idealismo, está muito mais próximo de Marx, e compreende melhor, com o seu empiriocriticismo, a actividade humana crítico-prática de que fala Marx, do que Lenine, cujo “Materialismo” se assemelha mais ao materialismo vulgar que às concepções de Marx.
O defeito de todo o materialismo passado (do de Lenine também), é que o objeto, a realidade, a materialidade são tomada apenas sob a forma de objeto, mas não como atividade sensível-humana, como prática. Por esta razão o lado ativo é desenvolvido de modo abstrato, em oposição ao materialismo, pelo idealismo, que naturalmente não conhece a atividade real, sensível, como tal Lenine quer objetos sensíveis, realmente distintos dos objetos ideais; mas não capta a actividade humana como actividade objetiva. Ele considera, portanto, em Materialismo e Empiriocriticismo, que a relação teórica é a única verdadeiramente humana, enquanto a prática não é tomada e fixada senão na sua forma de manifestação vulgar e judaica. Deste modo não compreende o significado da actividade revolucionária, crítico-prática. (Karl Marx, Tese sobre Lenine nº1, VER Teses sobre Feuerbach.)
Lenine não alcança sequer os materialistas do século XVIII, para os quais, tal como para Lenine, o mundo das ideias, ao não ser mais do que o reflexo do mundo objetivo, é o movimento autónomo do mundo objetivo o que determina o movimento das ideias, e os filósofos materialistas têm por única tarefa lutar contra as ilusões idealistas, não podem transformar o mundo: O mundo transforma-se, a consciência reflete esta transformação. Em Lenine, pelo contrário, o lado ativo é desenvolvido de modo abstrato e IDEALISTA. Para Lenine, com efeito, não é a atividade subversiva e revolucionária do proletariado, a sua atividade crítico-prática (sendo a consciência e a teoria da qual um momento, mas nada mais do que um momento) a que transforma o mundo. A atividade da classe não é enfocada por Lenine senão sob a sua “forma de manifestação vulgar e judaica”, como uma força material do mundo objetivo. Por isso, a força material com a qual Lenine vai transformar o mundo é a Ciência, com C maiúsculo, a Ciência que conhece as leis do mundo objetivo, a que Lenine conhece: o Marxismo, ou pelo menos a concepção que Lenine tem dele. Esta Ciência, para converter-se numa força material deve, claro, encarnar-se nas massas, mas esta Ciência não é a consciência do movimento real, espontâneo, orgânico do proletariado, e simples momento da sua atividade, como o olhar que Deus lança sobre as suas obras ao sétimo dia (mesmo a sua bíblia é mais “marxista” do que Lenine) senão não poderia elevar-se mais que a uma consciência sindicalista, é algo mais, que vem de… De facto, de onde vem? Lenine, que justamente tinha censurado isto aos seus adversários pequeno-burgueses, dá por si a cavalgar entre duas selas.
Tendo reduzido dum modo abstrato o movimento da classe operária a uma manifestação de força bruta, comparável à água da torrente, é óbvio que para ser utilizável, esta energia necessita da intervenção dum engenheiro hidráulico. Mas na teoria, como não vem do proletariado, e como se torna bastante escabroso atribuí-la pura e simplesmente ao adversário de classe, atribui-se a ao pensamento em si. A ciência tem, certamente, um objeto, mas não um sujeito, se não é metafísico. Para Lenine, como para Kautsky, a união do movimento operário e do socialismo é a da cabeça e das pernas, do cego e do paralítico. Por isso quando Kautsky, num último capítulo, fala da síntese da teoria e da prática, dá um belo exemplo de pensamento não dialético, já que chama síntese à justaposição tosca de dois elementos heterogéneos. Da mesma maneira, quando acredita refutar o idealismo, mostrando que unicamente o proletariado pode realizar o socialismo, Kautsky não supera o nível do engenheiro que “descobriria” que não pode produzir eletricidade apenas com a ajuda da sua teoria, mas que necessita também do trabalho da gravidade através da energia da torrente.
Pierre Guillaume, antes de se revelar um imbecil antissemita.
[1] Como Lenine no seu “Materialismo e Empiriocriticismo”, já para não falar do cretinismo estalinista.
[2] Observo um jogador de ténis e vejo que seus golpes não são suficientemente seguros, que não constrói suficientemente o seu jogo, que não percebe ou não sabe responder à estratégia do seu adversário com outra estratégia e que se contenta em devolver a bola como pode. A minha “Consciência” não é justa nem falsa, é abstrata, despojada de eficácia, e determinada pela minha situação de espectador. A “Consciência” que tem o jogador é de um tipo diferente; inclui, entre outras coisas, a percepção imediata da fadiga, das capacidades fisiológicas, sensoriais, de percepção e de reflexo, etc. A sua consciência é um momento do seu jogo, indissociável do seu jogo. A minha é inútil para o seu jogo. Se depois da partida, lhe comunico as minhas conclusões, estas serão totalmente inúteis para ele, exceto se se incluir na minha análise uma compreensão interna das determinações concretas do jogo do jogador, por exemplo, pela minha experiência, mas então a minha consciência já não estará simplesmente elaborada desde o exterior, e está parcialmente “do interior” e apenas é útil a este título, não é admissível senão nesta qualidade, e provavelmente não contribuirá com nada de novo que o jogador não saiba já, embora de outra maneira. No máximo, a nossa discussão desembocará, não em levar-lhe a consciência, mas na elaboração de uma linguagem pela qual as nossas experiências se tornam comunicáveis. É mais simpático, mas já não tenho nenhum privilégio.
[3] “História das doutrinas económicas” (Ed. Costes. Lib. “La Vieille Taupe”).