IDEOLOGIA E LUTA DE CLASSES
A classe operária é ou não portadora de uma vontade e de uma capacidade
de transformação revolucionária radical? É capaz de realizar à escala mundial a
verdadeira comunidade humana, a humanidade social?
Posto noutros termos, qual é o sentido de mais de cento e cinquenta anos
de lutas operárias, entrecortadas de vitórias exaltantes, de derrotas amargas e
de retrocessos em que tudo parece definitivamente perdido, como aquele em
vivemos depois do fracasso da revolução espanhola, e do qual mal saímos?
Desde a origem do capitalismo, quando a classe operária era apenas
embrionária, o comunismo surgiu desde o
princípio como o objetivo, o fim último, o sentido profundo e a tendência
imanente das lutas operárias … No entanto, as primeiras expressões ideológicas
coerentes duma teoria comunista foram obra dos “socialistas utópicos”.
Saint-Simon, Fourier em França, Owen na Inglaterra foram os mais célebres.
Tiveram numerosos predecessores, entre eles, o padre Meslier e Sylvain
Marechal. Herdeiros da filosofia iluminista do século XVIII, não concebiam, no
entanto, o comunismo como o produto da luta
revolucionária dos trabalhadores, nem como a tendência inelutável da sociedade
capitalista… Pelo contrário, constatavam, com o nascimento do capitalismo, os
males que este causa e por conseguinte o esboroar das ilusões da filosofia
iluminista, que tinha acreditado fundar sobre a razão abstrata a emancipação da
espécie humana. A liberdade dos filósofos não
era realmente mais do que a liberdade de os burgueses comprarem e venderem
livremente, e a liberdade de os proletários venderem a sua força de trabalho.
A igualdade não era mais do que uma igualdade abstrata,
a aplicação a essa abstração que é a Pessoa Humana de um direito igual para todos, enquanto que na realidade se aplicava
a pessoas fundamentalmente desiguais, segundo a posição que ocupam nas relações
de produção. No que diz respeito à fraternidade, não
era senão o véu pudico, a mistificação pela qual a burguesia nascente tentava
camuflar a guerra permanente que fazem entre si os diferentes burgueses devido
à concorrência e, sobretudo, o antagonismo que opõe proprietários e não
proprietários, burgueses e proletários.
A divisa revolucionária: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade, arma da burguesia contra o mundo feudal e o estado
monárquico despótico, convertia-se imediatamente em arma da burguesia na sua
guerra dissimulada ou aberta contra o proletariado.
Longe de ser sinónimo de emancipação do homem, o estado da razão, fundado pela revolução francesa, não
emancipava mais do que uma magra camada da população, a camada dos
proprietários, a burguesia, ao mesmo tempo que emancipava o capital de todas as
peias do direito feudal. A imensa maioria caía num estado de dependência total.
Era reduzida a não ser mais do que uma mercadoria no ciclo capitalista, a estar
totalmente submetida aos proprietários dos meios de produção, e esta submissão
ia acompanhada de uma decadência material e moral profunda e, nessa época, de
uma pauperização absoluta.
“Numa palavra, comparadas com as promessas deslumbrantes dos filósofos
do século XVIII, as instituições sociais e políticas estabelecidas pelo
‘triunfo da razão’ revelaram-se como caricaturas amargamente decepcionantes. Só
faltavam os homens para constatar esta decepção: estes (os utopistas) chegaram
com a viragem do século.” Assim, para os utopistas, testemunhas das misérias
evidentes da sociedade, o Estado da Razão, fundado pela revolução burguesa, não
era suficientemente razoável. A Razão
que o tinha fundado não era uma razão suficiente. Em
consequência empreenderam, desde o ponto de vista da razão e da justiça, uma
crítica desapiedada do mundo burguês.
Desta análise crítica da sociedade burguesa empreendida em nome da
razão, retiraram pela primeira vez a conclusão de que o comunismo é a única forma de sociedade “racional”,
e a solução de todos os males de que padece a sociedade capitalista.
“Naquela época, todavia, o modo de produção capitalista, e, com ele, o
antagonismo entre a burguesia e o proletariado, não haviam saído ainda de sua
fase incipiente. A grande indústria, que na Inglaterra acabava de nascer, era
inteiramente desconhecida em França. E a grande indústria é a encarregada de
desenvolver, por um lado, os conflitos que fazem da transformação do modo de
produção, uma necessidade inelutável – conflitos que estalam não só entre
as classes engendradas por ela como também entre forças produtivas e as formas de intercâmbio por elas criadas, – e, por
outro, as gigantescas forças produtivas, que oferecem os meios para resolver
esses conflitos. No princípio do século os conflitos, que brotavam da nova
ordem social, começavam apenas a crescer e ainda mais, naturalmente, os meios
para os resolver. Se as massas desprotegidas de Paris conseguiram apossar-se,
por algum tempo, do poder, durante o regime do Terror, foi somente para
demonstrar até que ponto era impossível manter esse poder nas condições da
época…
Essa situação histórica dominou também as doutrinas dos fundadores do
socialismo. Suas teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado
incipiente da produção capitalista, a embrionária situação da classe.
Queria tirar do cérebro a solução dos problemas sociais
latentes ainda nas condições económicas embrionárias da época. A sociedade não
continha senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se
de descobrir um novo sistema, mais perfeito, de ordem social, a fim de impô-lo
à sociedade, de fora para dentro, por meio da
propaganda, e, se possível, pregando-o com o exemplo, mediante experiências que
servissem de modelos de conduta. Esses novos sistemas sociais nasciam
condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos mais
haveriam de degenerar, forçosamente, em puras fantasias.” (“Anti-Dühring”)
Engels cita depois abundantemente as intuições geniais contidas nos
escritos dos socialistas utópicos e que o socialismo científico desenvolverá
posteriormente.
Poderia parecer, visto isto, que a teoria revolucionária, a consciência
comunista, foi elaborada exteriormente ao movimento operário, por intelectuais
que a levam depois à classe operária, e isto desmentiria, então, a nossa
afirmação preliminar segundo a qual: “o comunismo surgiu desde o princípio como
o objetivo, o fim último, o sentido profundo e a tendência imanente das lutas
operárias”.
Isto é uma ilusão perigosa. E é geralmente através desta concepção falsa
que as concepções idealistas da ideologia burguesa penetram na teoria
revolucionária juntamente com todos os desvios que o jargão consagrado
qualifica de voluntarista e oportunista. (Voltaremos a isto.)
Pareceria assim que, contrariamente à tese central de Marx: “não é a
consciência dos homens que determina a sua existência, é a sua existência
social que determina a sua consciência”, a consciência comunista elaborada no
exterior por pensadores especializados, ou, se quiserem, a teoria
revolucionária, a linha justa, a consciência de classe, importada de fora para
dentro do proletariado, modificaria a sua existência, ou seja, a sua prática
real, desde que ALGUÉM o levasse a assimilá-la.
Analisemos, então, para resolver este enigma, qual é a relação real
entre o nascimento das teorias socialistas crítico-utópicas, e o movimento real
da história e da classe operária.
A ideia segundo a qual as teses fundamentais do comunismo teriam nascido
no cérebro dos pensadores utopistas e levadas depois aos trabalhadores não é
senão uma ilusão de óptica. Certamente, é dessa maneira que os próprios
utopistas concebem a sua relação com a classe operária e a história, mas
trata-se duma pura e simples inversão ideológica da realidade. A relação real é
outra. Com efeito, nunca uma ideia ou invenção foi produto dum cérebro isolado,
ou de um ou vários pensadores especializados. A produção de ideias é um
processo eminentemente social. O surgimento de uma ideia nova no cérebro de um indivíduo está condicionado
ao mesmo tempo pelo conjunto da produção cultural e ideológica da época,
histórica e socialmente condicionada, e pela história desse indivíduo, a
totalidade da sua experiência humana, tomada em todas as suas determinações
concretas, de onde derivam por sua vez a sua estrutura psíquica e própria do
seu carácter, a sua perspectiva e a sua posição na circulação e produção
do stock social de ideias, de conceitos, de
informações ou preconceitos, no qual bebe e a partir do qual trabalha. (E numa
sociedade de classes, as determinações concretas do seu ser social estão
condicionadas pela sua situação nas relações de produção.) A produção de uma
ideia, de um conceito, de uma ideologia ou de uma teoria implica sempre a
colaboração informal de uma multidão de produtores anónimos e que permanecerão
sempre ignorados, da mesma maneira, por outro lado, que a produção de um
automóvel.
Mas sobretudo, para que os utopistas efetuassem a sua análise crítica
tão contundente da sociedade burguesa também fazia falta que a sociedade
burguesa existisse, e para que a sua análise fosse crítica, era necessário que
as contradições e as taras desta sociedade se tivessem manifestado. E, como se
manifestam estas taras senão pela luta daqueles que as padecem? A
irracionalidade da sociedade burguesa, o fracasso do humanismo burguês e a
inumanidade da condição proletária, foram vividos previamente pelo proletariado
antes de ser pensados e teorizados. E são as greves, as revoltas e os motins o
que atraiu a atenção dos pensadores sobre a irracionalidade do
sistema; não são os pensadores os que atraíram a atenção dos proletários sobre
a inumanidade da sua condição.
Não existe nenhum meio de saber se as condições de existência dos
elefantes na selva indiana não são elefantinas se os elefantes não o
manifestarem por uma revolta, ou (pelo menos para os elefantes) pela lenta
desaparição da espécie.
Assim, longe de ser o produto do cérebro de alguns intelectuais, as
ideias socialistas e comunistas foram previamente o produto da luta da classe
operária, que primeiro segregou suas ideias de maneira anónima e informal para
dar conta da sua situação e da sua luta. A partir destas ideias produzidas
social e coletivamente, os utopistas trabalharam e elaboraram o seu sistema.
Estas ideias estavam, muito antes dos utopistas, muito vivas no proletariado
que, precisamente porque mal acabava de sair das relações feudais (corporações)
ou pré-capitalistas (campesinato), sentia com uma agudeza e uma clareza muito
maior que nos nossos dias o escândalo do salariado, e o avassalamento que
significava o facto de ser um trabalhador livre, quer dizer, juridicamente
livre de todos os laços servis ou de grémio, e livre,
portanto, de vender a sua força de trabalho a quem a quisesse, mas livre também
de tudo, isto é, despojado de tudo e por conseguinte, separado dos meios de
produção convertidos em capital nas mãos do seu possuidor. Poder-se-ia
demonstrar facilmente, nisso a que se convencionou chamar “cultura popular” e
particularmente nas canções de ofícios que o nascimento do salariado é vivido
pelos proletários como um escândalo e um desenraizamento, e que imediatamente
apareceu a necessidade de pôr fim a este
desarraigamento por meio da reapropriação dos meios de produção. A comparação
possível com uma situação anterior muito próxima e que continuava estando ainda
amplamente presente na sociedade permitia captar imediatamente a diferença, muito melhor do que hoje em dia em que o
salariado acabou por ser vivido como natural. É esta
consciência difusa o que constitui o ponto de partida e a condição da
possibilidade do comunismo crítico-utópico. Os sistemas socialistas
não são mais do que a cúpula de um edifício ideológico cuja base e alicerces
foram construídos por um trabalho ideológico dos próprios trabalhadores com
base na sua experiência proletária, mas à medida que o edifício se eleva, novos
artesãos contribuem com as suas preocupações e pontos de vista diferentes.
Esqueceu-se por quem e em que condições se tinha construído a base do edifício.
No cimo, alguns artistas vieram esculpir as estátuas, algumas das quais são
belas, mas eles assinaram, pondo assim a marca da burguesia sobre o que não era
senão o produto da luta de classes.
No entanto, isto não significa que estes sistemas ideológicos são
produzidos directamente pela luta de classes e não são mais do que o reflexo do mundo objetivo e material, como afirma o
materialismo primitivo criticado por Marx (teses sobre Feuerbach, entre outras)
e no qual incorre o marxismo degenerado[1], ou que os ideólogos não seriam mais do que porta-vozes
das diferentes classes, ou uma espécie de caixa de ressonância de ideias
existentes já acabadas fora deles e saídas não se sabe de onde ou ainda “refletindo”
o mundo material não se sabe por que processo. As ideias, as teorias, são o
produto da actividade humana, do trabalho humano, não um reflexo passivo, e que
transforma, pois, uma matéria-prima num produto humanizado, experiências e
sensações em conceitos, organiza os conceitos, transforma-os, etc.
Mas o proletariado não esperou que pensadores especializados,
beneficiando-se da sua cultura burguesa, cheguem à conclusão teórica, graças ao
seu trabalho específico, de que a fonte de todos os males da sociedade era a
apropriação privada dos bens, e que esta apropriação privada devia ser abolida
e o comunismo instaurado… Desde que o proletariado existe, quer dizer, uma
classe de homens livres que não possuem para viver mais do que a sua força de
trabalho e constrangidos, pois, a vendê-la a troco de um salário aos
possuidores dos meios de produção, ele manifestou com seus atos (portanto,
a consciência prática, a única que nos interessa)
o juízo inequívoco que pronunciava contra a propriedade privada, e a sua
tendência espontânea (já que é conforme ao seu ser) de apropriar-se pela violência, e sem outro tipo de processo, daquilo de que
era defraudado: as condições de trabalho, os meios de produção, mercadorias,
dinheiro. Encontra-se não só a manifestação desta consciência prática, desta
consciência em ato, e um princípio de expressão ideológica nas greves e motins
operários desde o começo do século XVIII, mas mesmo durante o feudalismo e na
antiguidade, na medida em que existiam no interior destas sociedades dominadas
por relações feudais, escravagistas ou de tipo asiático sectores extremamente
limitados nos quais o salariado se tinha desenvolvido.
O proletariado não tem nenhuma necessidade de ir aprender aos livros,
mesmo que sejam “marxistas”, para saber identificar os seus inimigos, basta-lhe
estar exposto a eles.
“O proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e
poderoso, o seu antagonismo à sociedade da propriedade privada. A revolta
silesiana começa exatamente lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores
franceses e ingleses, isto é, na consciência daquilo que é a essência do
proletariado. A própria ação traz este carácter superior. Não só são destruídas
as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os livros comerciais, os
títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam
primeiramente contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento
volta-se também contra o banqueiro, o inimigo oculto.” (Glosas
Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”, Marx)
Isto não significa que o proletariado teria necessariamente e através de
não se sabe que mistério, a “ciência infusa”, nem que possua uma teoria clara e
adequada dos fins e dos meios. Pois o comunismo não é “o que pensa este ou
aquele proletário, ou mesmo o que o proletariado no seu conjunto imagine ser o
seu objetivo momentaneamente, mas sim o que, em conformidade com o seu ser se
verá constrangido a fazer”.
O comunismo não é, pois, um “projeto” ou um “programa” de transformação
social trazido de fora, nem sequer criado ideologicamente pela própria classe
operária e aceite no seu conjunto, o comunismo é o produto espontâneo, a lógica
imanente, interna da sua luta.
É esta luta o que constitui o fundamento e a única fonte de toda a teoria revolucionária, por muito abstrata
e geral que seja.
Deste modo, é o SER DO PROLETARIADO, sem nenhuma mediação, o que funda
histórica e teoricamente o comunismo. Da mesma maneira, por outro lado, é o ser
da burguesia, e não a Razão, quem histórica e praticamente fundou a sociedade
burguesa. Com efeito, “quando se estudam as transformações deste género (as
transformações sociais) há que distinguir sempre entra a transformação material
que se opera nas condições económicas da produção… e as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, numa palavra, as formas
ideológicas através das quais os homens tomam consciência deste conflito e se
esforçam por resolvê-lo.” (Prefácio da Crítica da Economia Política.)
O proletariado não denuncia a sociedade capitalista desde o ponto de
vista da Razão, denuncia-a, pela sua prática, desde o ponto de vista do seu
ser; e quando exprime conscientemente esta denúncia, o que não é “mais que a
forma ideológica através da qual toma consciência do conflito”, não faz senão
enunciar o que é e o sentido do que faz.
“Quando o proletariado denuncia a dissolução da ordem social atual, não
faz mais que enunciar o segredo da sua própria existência: pois ele mesmo
constitui a dissolução desta ordem social…” (Marx: Crítica da filosofia do
direito de Hegel.)
Mas antes de ver que é este o SER DO PROLETARIADO, e portanto, o
movimento que o empurra inelutavelmente a destruir a sociedade capitalista, e
por este mesmo movimento, a criar outras relações de produção, por conseguinte,
outras relações entre os homens e entre os bens produzidos por eles: o
comunismo, voltemos atrás e analisemos o significado da inversão ideológica que acabamos de mostrar.
Assim, vimos que o comunismo crítico-utópico não era mais do que o
produto ideológico do desenvolvimento da sociedade capitalista e dos seus
antagonismos, portanto, o produto indireto das lutas operárias; mas que a
teoria, o sistema ideológico não era consciente ele próprio desta relação de
que acabamos de indicar apenas as mediações.
Vejamos para começar, quais são as consequências disto para a própria
teoria.
Pelo simples facto de que não é consciente desta relação, a teoria
compromete-se e afunda-se na especulação. Excetuando algumas intuições geniais,
este “comunismo” converte-se em pura abstração e fantasia, bem incapaz de
comprovar na prática “a realidade e a potência, a materialidade do seu
pensamento”.
Por via desta separação a teoria torna-se falsa. Poder-se-ia submetê-la
a ela mesma, à crítica, crítica, e mostrar que os seus “projetos” são ao mesmo
tempo irrealizáveis e estão minados por contradições insuperáveis que, por
outro lado, a prática se encarregou de demonstrar, com a falta de respeito
habitual que tem pelas ideias. Os projetos da comunidade comunista, de
falanstérios, etc., esboçados pelos utopistas, ou nunca viram a luz do dia
porque não existiam condições para a sua criação e mal suscitavam a adesão dos
trabalhadores, ou então, na medida em que foram realizadas algumas tentativas,
faliram sob a pressão de contradições externas e internas.
Mas vejamos agora quais são as consequências práticas, para o movimento revolucionário,
deste erro teórico fundamental: esta incompreensão da relação real entre a
teoria e o movimento da história.
A “ideologização” da teoria não só é mortal para a teoria, é contrarrevolucionária
na prática, já que desemboca necessariamente em retirar ao proletariado a
iniciativa histórica, para situá-la noutro lugar. A separação da teoria
desemboca sempre na teoria da separação, e fundamenta teoricamente esta
separação.
Desta maneira, em que desembocam as concepções dos comunistas utópicos,
mesmo sendo o produto indireto da luta de classes? Em vez de dizer aos
proletários: “Continuai a vossa luta desapiedada, e que só agora começou,
contra a sociedade burguesa, contra o capital e a mercadoria sob todas as suas
formas, e contra o Estado burguês, que não é mais do que o seu defensor e o sua
última garantia. As nossas análises teóricas, para as quais utilizámos o máximo
de materiais que oferece a cultura burguesa, provam não só que a vossa luta é
justificada, que é a única via possível para os trabalhadores, coisa que vós já
sabeis, mas também que os meios de luta que criastes, a greve, o motim, a
insurreição armada, são os melhores, de qualquer maneira nós não encontrámos
nada melhor, e ao atuar assim não só vos emancipais vós mesmos mas também toda
a humanidade, pelo que nós pomos as nossas forças ao serviço do vosso
programa”.
Em vez de empregar esta linguagem, empregam exatamente a linguagem
inversa: “Proletários, compreendemos as vossas lutas e por vezes admiramos o
vosso heroísmo, no entanto somos obrigados a dizer-vos que estais no caminho
errado, chocais contra a sociedade e o Estado como uma borboleta contra o
vidro, esbanjais inutilmente as vossas forças, as nossas análises teóricas
permitem-nos dizer-vos que deveríeis proceder doutra maneira…” As receitas
mudam em cada caso. Para os utopistas, tratava-se essencialmente da criação de
comunidades comunistas, falanstérios etc., de onde a propriedade privada, e,
portanto, a lógica mercantil, era desterrada por regras formais de
funcionamento.
Deste modo, toda a teoria que deixa de ser a teoria do movimento real da
história, por conseguinte, na nossa época, do desenvolvimento da sociedade
capitalista, e da luta da classe operária contra o Capital, degenera ipso facto em ideologia e exprime interesses
opostos, ou pelo menos, estranhos, ao proletariado. Torna-se evidente que o
desenvolvimento de uma ideologia assim não depende simplesmente duma falta de
capacidades teóricas, duma falta de argúcia na análise, exprime, pelo
contrário, um ponto de vista particular
sobre a sociedade e a história, portanto uma posição particular
na sociedade e na história, separada e que
se pensa como separada do proletariado.
Isto não é válido apenas quando do nascimento do movimento operário, no
momento em que os antagonismos de classe estavam pouco desenvolvidos
quantitativamente (já que qualitativamente o antagonismo Capital -Trabalho é
invariável enquanto exista salariado), isto constitui uma constante permanente
do movimento operário, e esta análise é a pedra de toque que permitirá
descobrir o ouro da teoria revolucionária no meio das diversas mercadorias
ideológicas propostas para consumo das massas. Este método permitirá sobretudo
comprovar o carácter revolucionário das teorias e organizações até aos nossos
dias, e compreender como uma teoria, por muito revolucionária que seja, cai na
ideologia, e, portanto, deixa simultaneamente de ser científica e
revolucionária.
A concepção que acabámos de expor, na que não fazemos outra coisa senão
parafrasear Marx e Engels, opõe-se radicalmente às concepções revolucionárias
de Lenine e às suas versões degeneradas, chamadas de leninistas. Para Lenine,
com efeito, que repete quase palavra por palavra em ” As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo”
(Março de 1913), o texto de Kautsky: ” As três fontes do Marxismo”
(1908), o comunismo já não é o produto orgânico, necessário, do próprio
movimento da sociedade capitalista e da luta revolucionária do proletariado que
resulta dele, o “Comunismo”, a “teoria socialista” é o produto duma CRÍTICA
teórica da sociedade capitalista e a sua forma mais elaborada, o marxismo,
seria então o produto da síntese efetuada por Marx, das ciências naturais e
psicológicas, por um lado, e do pensamento alemão, do pensamento francês e do
pensamento inglês, por outro.
Esta síntese é concebida como um movimento interno do pensamento, devida
à dinâmica da inteligência.
Para Kautsky, as ciências burguesas, tinham chegado a um nível de
desenvolvimento muito alto, mas tropeçavam com um certo número de problemas…
então veio Marx. Viu que a história é o resultado de… (sic, As três fontes, pág 9, continua)
Certamente, Kautsky apela cordialmente à “União do movimento operário e
do socialismo”, é o título do 4º capítulo do seu folheto. Lenine também: é o
assunto de “Que fazer?” e a meta de toda a sua vida.
Muito amável da parte deles! Já que para eles: ” O movimento operário e
o socialismo não são de modo nenhum idênticos por natureza” (Kautsky, op.
cit.). Tanto para um como para o outro: “a forma original do movimento operário
é puramente económica” (Kautsky, op. cit.) enquanto que “o socialismo pressupõe
um conhecimento profundo da sociedade moderna” (Kautsky, op. cit.), o que
Lenine desenvolve em “Que fazer?”; falando das greves de 1886-90: “Os operários
não podiam ter ainda a consciência social-democrata que apenas podia ser-lhes
levada do exterior… A história de todos os países testemunha que, entregue às
suas próprias forças, a classe operária pode apenas atingir uma consciência
sindicalista (…), etc. Quanto à doutrina socialista, ela surgiu das teorias
filosóficas, históricas, económicas elaboradas por certos representantes
instruídos das classes possuidoras, os intelectuais. Pela sua situação social,
os fundadores do socialismo, Marx e Engels, eram intelectuais burgueses. Da
mesma maneira, na Rússia a doutrina social-democrata surgiu independentemente
do crescimento espontâneo do movimento operário; foi o resultado natural e
fatal do desenvolvimento do pensamento nos intelectuais socialistas
revolucionários”.
Assim, tal como Kautsky, Lenine vê no marxismo, ou consciência
“social-democrata”, um produto ideológico. Declara mesmo que esta produção é
obra específica de intelectuais revolucionários que, seguramente, escolheram o
campo da classe operária, mas que são os únicos capazes de chegar a uma
consciência revolucionária, graças à crítica teórica que fazem do capitalismo,
a partir dos elementos que a cultura burguesa da qual são depositários, ou pelo
menos, aquela à qual têm acesso, lhes fornece.
Isto parece conter, pelo menos, uma verdade histórica evidente: o papel
de intelectuais não operários, em particular de Marx, mas também de muitos
outros… na elaboração da teoria revolucionária. Mas esta concepção é totalmente
idealista. Por um lado, apoia-se na ilusão de que a consciência revolucionária
é produzida por um cérebro individual (ou alguns cérebros); por outro lado, não
se põe a questão elementar: esta consciência, é consciência DE QUÊ?
Portanto a frase do “Que fazer?” “entregue às suas
próprias forças, a classe operária pode apenas atingir uma consciência
sindicalista”, é na realidade apenas a ideia que o vulgo tem sobre o movimento
da classe operária. Esta formulação é espantosa, já que estamos no direito de
nos perguntarmos A QUEM tem que entregar-se a classe operária para atingir uma
consciência comunista, e DE ONDE vem essa consciência? Esta formulação
contradiz, além disso, as teses de Marx e Engels, que demonstravam, pelo estudo
dos movimentos insurreccionais do proletariado, que a classe operária não
esperou por Lenine, nem por eles próprios, para elevar-se à consciência prática da necessidade do comunismo.
A resposta que dá Lenine, depois de Kautsky, a esta inquietante
“constatação” é ainda mais assombrosa. Para Kautsky e Lenine, a teoria, a consciência
revolucionária, é lhes levada do exterior, pelos intelectuais burgueses.
Esta concepção opõe-se radicalmente à crítica efetuada por Marx do
idealismo, e de todo o materialismo passado, inclusive o de Feuerbach (Teses
sobre Feuerbach, 1 e 3), enquanto que “esquece que o educador tem ele próprio
de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade
em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade”.
Poder-se-ia prosseguir parafraseando a continuação da tese nº 3. “Lenine
e Kautsky não compreendem que a coincidência do mudar das circunstâncias e do
mudar da actividade humana –ou a modificação de si mesmo – só pode ser
concebida e racionalmente entendida como prática revolucionária.”
Com efeito, Marx não opõe de uma maneira abstrata a realidade, o mundo objetivo,
por um lado, a consciência, o mundo subjetivo, por outro, e a actividade
prática que as liga. Pelo contrário, concebe-as numa totalidade, e demonstra
que estas categorias, objetivo-subjetivo-atividade prática, concebidas de um
modo abstrato de outra maneira que como momentos de uma mesma totalidade, são o
produto dum pensamento petrificado, produzido por sua vez por uma sociedade de
classes, em que a actividade humana está efetivamente cindida pela divisão do
trabalho.
Se seguimos a concepção de Marx, é simplesmente absurdo pensar que a consciência possa ser
elaborada no exterior (ou pelo menos, uma
consciência elaborada no exterior é uma consciência abstrata, uma consciência
de espectador, despojada de eficácia prática) e igualmente absurdo pensar que a
consciência possa ser introduzida desde o exterior pela propaganda[2]; no entanto, é a pretensão de
Kautsky e Lenine, que se concebem a si mesmos como os educadores da classe
operária, antes de que os avatares da história façam de um, ministro, e de
outro um chefe genial, sorte pouco invejável, tão uma como a outra, para quem
se reivindica da teoria proletária.
A teoria leninista do partido resulta logicamente da sua concepção de
teoria e das suas relações com o movimento espontâneo da classe. Daqui resulta
inelutavelmente que se revolucionários profissionais se unem à classe operária,
não pode ser senão para dirigi-la (no
sentido dirigente-chefe, e não só de “boa direção”, pois a teoria permite efetivamente
cimentar a “boa direção”, mas precisamente esta “boa direção” inclui a
liquidação dos “dirigentes” pelos meios apropriados à resistência que
apresentem).
Vê-se por isto o que motiva a moda da concepção leninista do partido
entre os nossos modernos “leninistas”. Mesmo quando esquecem mais ou menos
grande parte de outros aspectos do leninismo –em particular, as suas teses
revolucionárias – ao defender a teoria do “papel dirigente do partido”
apenas defendem o seu poder real (de Brejnev a Waldeck-Rochet, passando por
Gomulka e Mao) ou o seu poder mítico (trotskistas ou maoístas em França).
Então esta concepção desemboca na necessidade de construir um partido
revolucionário, destinado a dirigir a luta do proletariado pelo bom caminho,
que o proletariado seria incapaz de encontrar por si mesmo. Isto desembocará,
portanto, em desviar os elementos mais combativos do proletariado para este
trabalho de Sísifo, e a afastá-los das suas tarefas reais. O critério
determinante deixará de ser a luta de classes em si mesma, à qual cada
trabalhador está vinculado pela sua situação, mas a “construção
da organização e da direção“. A luta de classes é concebida apenas
como uma revolta elementar, à qual só o partido dará sentido. Esta concepção
priva, pois, tanto o comunismo como a teoria revolucionária do seu fundamento,
para colocá-lo nas capacidades dos seus dirigentes. As lutas operárias passam a
ser só um meio para reforçar a
organização, e nos casos mais delirantes, pretender-se-á mesmo construir o
socialismo sem ou contra o proletariado. Privada do seu fundamento, a teoria
revolucionária nada na abstração e na metafísica. O comunismo não é já o
resultado prático das lutas revolucionárias da classe operária, mas define-se
em nome duma racionalidade abstrata, diferente consoante os casos e a posição
prática dos autores, mas de qualquer maneira, já não é o “movimento real que abole o estado de coisas existente“,
ou não unicamente.
Antes de analisar os absurdos a que podem conduzir, em Lenine, as
concepções desenvolvidas previamente por Kautsky, e sem pretender fornecer, no
marco deste artigo, uma apreciação global da obra de Lenine, que não se reduz
às teses do “Que fazer?” nem às do “Materialismo e Empiriocriticismo“, vejamos no que está
equivocada esta concepção, na sua própria raiz: a teoria da origem da
consciência socialista desenvolvida nas Três Fontes.
Contrariamente à afirmação sumária de Kautsky: “Foi assim que (Marx e
Engels) criaram o socialismo científico moderno pela fusão de tudo o que o
pensamento inglês, o pensamento francês e o pensamento alemão tinham de grande
e fértil”, repetida por Lenine:” A sua doutrina (de Marx) nasceu como a
continuação direta e imediata da dos maiores representantes da filosofia, da
economia política e do socialismo… O marxismo é o sucessor natural de tudo o
que a humanidade criou de melhor no século XIX, na filosofia alemã, na economia
política inglesa e no socialismo francês”, a teoria de Marx NÃO É o produto de
síntese, mesmo dialética, do socialismo francês, da economia inglesa e da
filosofia alemã, quer dizer, a síntese ideológica de três sistemas ideológicos
criados pela burguesia.
Com certeza, Marx utilizou amplamente estas fontes e não deixa de
sublinhá-lo ele mesmo, mas também consagrou uma obra volumosa[3] – oito volumes na edição francesa – para
indicar, paralelamente ao que utilizava delas, a ruptura radical que o separava dos teóricos
burgueses da economia política, e explica-o no livro I do Capital. Passou a maior parte da vida lutando teórica e
politicamente contra o “socialismo francês“.
Quanto à filosofia alemã, não julgou necessário publicar, vivendo ainda, uma obra
comum com Engels na que e através da qual ambos efetuavam uma ruptura radical
com o seu passado filosófico comum. Não julgaram necessário publicar A Ideologia Alemã porque consideravam esta obra
como um simples testemunho de uma evolução pessoal, e porque consideravam esta
ruptura como a condição e o ponto de partida da teoria revolucionária.
Inédita enquanto viveu Lenine, A Ideologia Alemã constitui em todo o
caso a refutação a posteriori da interpretação
de Lenine e de Kautsky sobre o ponto que nos interessa no presente.
No entanto, é instrutivo observar que o movimento operário não
necessitou da publicação d’ “A Ideologia Alemã”
para fazer a crítica prática e teórica das posições de Lenine, desde o seu
nascimento. Trotsky, particularmente no seu texto Nossas Tarefas Políticas, mas
também em textos como Balanço e Perspectivas e Informe da Delegação Siberiana, ou no texto menos
desconhecido intitulado 1905, efetua uma crítica das posições bolcheviques e
recupera os temas, e às vezes até mesmo as formulações, de Marx.
O facto de que o próprio Trotsky tenha acreditado, por oportunismo
táctico, dever minimizar a partir de 1917 as divergências que o opunham a
Lenine entre 1901 e 1916, não altera nada. Por mais que as diversas variedades
de trotskistas ocultem sistematicamente estes textos e não os tenham publicado
jamais em francês, eles constituem a contribuição principal de Trotsky para a
teoria revolucionária. A sua tradução e publicação, (por não-trotskistas) é uma
consequência direta do Movimento de Maio em França. Eis aí o que dá para refletir
acerca das relações entre o movimento do pensamento e a luta de classes.
Dito isto, não é menos certo que Marx e Engels e todos os teóricos
revolucionários sem excepção beberam abundantemente nas fontes da ciência burguesa.
Mas Kautsky e Lenine utilizam este fato, esta constatação evidente,
fenomenológica, sem ser capazes de penetrar no seu mecanismo e no seu
significado profundo, e tentam fundamentar o papel de elementos exteriores à
classe operária na elaboração da doutrina, exteriores tomado em sentido amplo,
quer dizer, não só exteriores “por casualidade” – constatamos que estes
intelectuais não são operários – mas também exteriores por essência de certa
maneira, quer dizer, utilizando elementos que, por natureza, não são nem podem
ser elaborados pela classe operária. Com efeito, como vimos, o “Socialismo
Francês” é apenas a formação ideológica pela qual se exprimem as lutas
nascentes da classe operária francesa, de maneira mistificada. O que Marx
encontra no socialismo francês não é mais do que a forma pela qual se manifesta
a Realidade da luta de classes, e só poderá utilizá-lo
com proveito na sua produção teórica depois de o submeter à crítica e ter
alcançado através dela o que constituía o seu fundamento inconsciente: a luta
proletária nas suas determinações concretas. O que esta luta enfrenta é a
realidade da sociedade burguesa, da economia capitalista, da qual a ciência
económica burguesa, através de Smith e Ricardo, é a formação ideológica mais
desenvolvida, pela qual a burguesia toma consciência do seu próprio sistema. À
medida que a luta proletária se desenvolve, encontra a realidade capitalista e
experimenta-a na sua totalidade, necessita, pois, de uma teoria “científica”,
pela qual exprime a sua experiência e toma consciência da sua prática. Esta
teoria é uma formação ideológica, o produto de um trabalho ideológico, mas não
uma ideologia, no sentido em que ela mesma é consciente da raiz prática das suas “ideias”.
É evidente que a elaboração desta teoria beberá abundantemente (Marx não
deixa de sublinhá-lo através de numerosas citações) da ciência económica
burguesa, da mesma maneira que o proletariado, apropriando-se e para
apropriar-se ao mesmo tempo de seu ser genérico, do conjunto da vida social, e
dos produtos da actividade humana presente e passada –que não existe na
sociedade capitalista a não ser sob a forma de capital oposta a ele – se
apropria ipso facto da totalidade da cultura humana, mas de
outro modo. Mas esta ciência burguesa não será utilizável a não ser ao preço
duma inversão completa de sua perspectiva.
Esta relação é ainda mais clara na utilização que Marx fez do que se
convencionou chamar “A filosofia alemã”, e especialmente a filosofia de Hegel.
Incapaz de alcançar a realização política do seu Ser, como a burguesia francesa
através da Revolução francesa, e incapaz de alcançar a realização económica,
como a burguesia inglesa, através da formidável expansão do capitalismo inglês
no século XIX, na Alemanha retalhada política e economicamente, travada em
todos os planos, no seu desenvolvimento, por resíduos feudais, os quais tenta
sacudir, a burguesia alemã alcançará o desenvolvimento ideológico mais elevado
através da produção de sistemas filosóficos e da vida intelectual crítica.
Incapaz de varrer os obstáculos na prática, fundamenta, com Hegel, a
necessidade do seu devir, ou mais exatamente, do seu porvir, na filosofia da
história, concebida como desenvolvimento do espírito, da ideia, que se realiza
finalmente, no fim da história, representação ideológica
do reino da burguesia, através da dialética histórica, na qual o espírito se
perde e se volta a encontrar encarnando-se no mundo. Sem querer aprofundar
sobre um sistema que toda a apresentação sumária empobrece ao ponto de o fazer
parecer irrisório, digamos que o sistema de Hegel é, em primeiro lugar, a
História pensada. É mesmo a criação do espírito mais notável e acabada para
“pensar a História”, na medida justamente em que o seu método dialético lhe
permite superar os falsos problemas e as antinomias do pensamento dualista e
metafísico; em particular, o do determinismo e da liberdade.
Tendo em conta que o sistema hegeliano é uma tentativa para apreender o
movimento real da História, os elementos do método, assim como os conceitos
produzidos para pensar a história são utilizáveis pela teoria proletária, ainda
que o próprio Hegel, e todo o seu sistema, tenham permanecido no terreno do
idealismo e da burguesia, da mesma maneira que certos conceitos e elementos de
método, criados por Smith e Ricardo para dar conta dos fenómenos económicos são
perfeitamente utilizáveis, sem que seja necessário reinventá-los a partir do
zero. Mas seria um erro completo, cometido, no entanto, por Kautsky e Lenine,
mesmo tendo-se Marx explicado amplamente, acreditar, sob pretexto de que uma
parte dos materiais são os mesmos, que a teoria revolucionária não é mais do
que uma continuação da teoria burguesa, ou mesmo o seu auge, como se o
“desenvolvimento fatal do pensamento” conduzisse a conclusões socialistas ante
as quais os pensadores burgueses teriam recuado. Da mesma maneira que as
mesquitas de Tunes, construídas sobre as ruínas dos templos greco-romanos
utilizando os seus blocos de mármore, não são a continuação e o acabamento do
templo e supõem, muito pelo contrário, a destruição do templo para existir.
Da mesma maneira, os melhores produtos do pensamento burguês não só
devem ser despojados de uma ganga idealista que mancharia esta fase do pensamento
humano em desenvolvimento, mas também ser transformados totalmente em sua
própria estrutura e integrados num novo conjunto, ainda que o proveniente tal
como o subministra o pensamento da classe precedente é acessório para
compreender a nova perspectiva e a nova construção. Pois não há só “fases” num
pensamento “humano” em desenvolvimento, há rupturas radicais entre modos de
pensar diferentes, porque mantêm com a realidade relações e funções diferentes.
Deste modo, há o pensamento antigo, feudal, burguês, proletário (entre outros),
o pensamento sucessivo (que nega superando), que integra ou não integra o
pensamento precedente. (Assim o pensamento burguês integra, superando-o, o
pensamento feudal, reencontra e integra o pensamento clássico, o pensamento feudal
perde o pensamento antigo, o que não quer dizer que o pensamento antigo se
perde totalmente, pois a sociedade feudal não forma e não pode formar uma
totalidade coerente. A Igreja, mesmo “feudalizada”, que lhe é coextensiva, não
é redutível ao feudalismo, a mercadoria que a atravessa e vive em seus poros
é-lhe antagónica.)
Mas a passagem de um ao outro, do pensamento antigo ao pensamento
feudal, da mesma maneira que a passagem do socialismo francês, da economia
inglesa, da filosofia alemã, à teoria revolucionária, não é um processo interno do pensamento. A possibilidade desta
passagem está condicionada pela modificação da relação entre o homem e a natureza, o homem e o trabalho, dito de outro modo, já que
se trata de uma sociedade de classes, pelo
desmoronamento das relações de produção e o surgimento duma nova classe que,
pela sua posição nas relações de produção, lança sobre a natureza, a história,
o trabalho (ou a linguagem matemática) um olhar diferente. Ou mais exatamente,
mantém com a natureza e a actividade produtiva humana sob todos os seus
aspectos uma relação diferente. A condição para a reviravolta operada por Marx,
a partir, é certo, de elementos fornecidos pela ideologia burguesa, para
fundamentar uma nova concepção do mundo, tem o seu fundamento e raiz na
existência prática do proletariado e na crítica prática que este faz da
sociedade burguesa. Para que Marx efetuasse, no plano teórico, a superação da
antinomia legada pelo pensamento burguês entre materialismo e idealismo,
antinomia produzida por sua vez pela cisão real introduzida na actividade
humana pela aparição da sociedade de classes e pela ruptura da comunidade
primitiva, era ainda necessário que existisse uma classe que fosse, em seu
próprio ser, a solução prática desta antinomia. O Proletariado pode dar a esta
contradição uma solução prática porque une na sua atividade fundamental (o
trabalho) o pensamento e a matéria, a “modificação da consciência e a
modificação da matéria” (ou das “Circunstâncias” na tese nº 3, isto é, do mundo
objetivo), categorias que são pensadas como separadas pelo pensamento burguês,
porque são efetivamente separadas pela burguesia.
A história do pensamento antes de Marx era efetivamente caracterizada
pela oposição irredutível entre o pensamento, o espírito, a ideia, por um lado,
e a matéria, o mundo objetivo, por outro. Para o idealismo, o movimento interno
do pensamento, da ideia, do espírito, é o motor do movimento. O pensamento toma
consciência do mundo objetivo e, pelo seu próprio trabalho, produz o movimento.
Para o materialismo, pelo contrário, é o mundo material, objetivo, o que, pelo
seu próprio movimento, arrasta o movimento do pensamento, que “toma
consciência” dele e reflete-o. A atividade produtiva humana é a solução em ato
desta antinomia. Pensamento e ação, teoria e prática são momentos
indissociáveis desta actividade. Sem teoria, nenhuma prática,
mas sem prática, nenhuma teoria. O trabalho, a relação do
homem com a natureza, é ao mesmo tempo o meio pelo qual o homem transforma o
mundo objetivo e o produz, e é o meio pelo qual se transforma e se produz a si
mesmo. Há coincidência da modificação do pensamento e da matéria. O pensamento
puro não é uma relação humana com a matéria. É a relação do homem castrado de
sua atividade propriamente humana, do homem espectador de um mundo que não
consegue transformar.
Poder-se-á medir o retrocesso teórico de Lenine, particularmente
em Materialismo e Empiriocriticismo. Nesta obra, Lenine
polemiza com Mach, cujo idealismo denuncia. Para isso, pega nos pontos mais
fracos, e incontestavelmente idealistas de Mach, para liquidar os elementos mais
importantes. Este procedimento de baixa polémica está totalmente ausente na obra
de Marx, que sublinha, pelo contrário, inclusive nos seus piores adversários,
os aspectos positivos. Já que o problema de Marx nunca é liquidar um
adversário, mas, pelo contrário, apropriar-se em profundidade do pensamento do
seu adversário, e liquidar não o adversário, mas, nas suas ideias, o idealista
ou o reacionário. Poder-se-ia inclusive sustentar que Mach, apesar do seu
idealismo, está muito mais próximo de Marx, e compreende melhor, com o seu
empiriocriticismo, a actividade humana crítico-prática de que fala Marx, do que
Lenine, cujo “Materialismo” se assemelha mais ao materialismo vulgar que às
concepções de Marx.
O defeito de todo o materialismo passado (do de Lenine também), é que o objeto,
a realidade, a materialidade são tomada apenas sob a forma de objeto, mas não como atividade sensível-humana, como prática. Por esta
razão o lado ativo é desenvolvido de modo abstrato,
em oposição ao materialismo, pelo idealismo, que naturalmente não conhece a atividade
real, sensível, como tal Lenine quer objetos sensíveis, realmente distintos dos
objetos ideais; mas não capta a actividade humana como actividade objetiva. Ele
considera, portanto, em Materialismo e
Empiriocriticismo, que a relação teórica é a única verdadeiramente
humana, enquanto a prática não é tomada e fixada senão na sua forma de
manifestação vulgar e judaica. Deste modo não compreende o significado da
actividade revolucionária, crítico-prática.
(Karl Marx, Tese sobre Lenine nº1, VER Teses sobre Feuerbach.)
Lenine não alcança sequer os materialistas do século XVIII, para os
quais, tal como para Lenine, o mundo das ideias, ao não ser mais do que o
reflexo do mundo objetivo, é o movimento autónomo do mundo objetivo o que
determina o movimento das ideias, e os filósofos materialistas têm por única
tarefa lutar contra as ilusões idealistas, não podem transformar o mundo: O
mundo transforma-se, a consciência reflete esta transformação. Em Lenine, pelo
contrário, o lado ativo é desenvolvido de modo abstrato e IDEALISTA. Para
Lenine, com efeito, não é a atividade subversiva e revolucionária do
proletariado, a sua atividade crítico-prática (sendo a consciência e a teoria
da qual um momento, mas nada mais do que um momento)
a que transforma o mundo. A atividade da classe não é enfocada por Lenine senão
sob a sua “forma de manifestação vulgar e judaica”, como uma força material do
mundo objetivo. Por isso, a força material com a qual Lenine vai transformar o
mundo é a Ciência, com C maiúsculo, a Ciência que conhece as leis do mundo objetivo,
a que Lenine conhece: o Marxismo, ou pelo menos a concepção que Lenine tem
dele. Esta Ciência, para converter-se numa força material deve, claro,
encarnar-se nas massas, mas esta Ciência não é a consciência do movimento real, espontâneo,
orgânico do proletariado, e simples momento da sua atividade, como o olhar que
Deus lança sobre as suas obras ao sétimo dia (mesmo a sua bíblia é mais
“marxista” do que Lenine) senão não poderia elevar-se mais que a uma consciência sindicalista, é algo mais, que vem de…
De facto, de onde vem? Lenine, que justamente tinha censurado isto aos seus
adversários pequeno-burgueses, dá por si a cavalgar entre duas selas.
Tendo reduzido dum modo abstrato o movimento da classe operária a uma
manifestação de força bruta, comparável à água da torrente, é óbvio que para
ser utilizável, esta energia necessita da intervenção dum engenheiro
hidráulico. Mas na teoria, como não vem do proletariado, e como se torna
bastante escabroso atribuí-la pura e simplesmente ao adversário de classe,
atribui-se a ao pensamento em si. A ciência tem, certamente, um objeto, mas não
um sujeito, se não é metafísico. Para Lenine, como para Kautsky, a união do
movimento operário e do socialismo é a da cabeça e das pernas, do cego e do
paralítico. Por isso quando Kautsky, num último capítulo, fala da síntese da
teoria e da prática, dá um belo exemplo de pensamento não dialético, já que
chama síntese à justaposição tosca de dois elementos heterogéneos.
Da mesma maneira, quando acredita refutar o idealismo, mostrando que unicamente
o proletariado pode realizar o socialismo, Kautsky não supera o nível do
engenheiro que “descobriria” que não pode produzir eletricidade apenas com a
ajuda da sua teoria, mas que necessita também do trabalho da gravidade através
da energia da torrente.
Pierre Guillaume, antes de se revelar um imbecil antissemita.
[1] Como Lenine no seu “Materialismo e
Empiriocriticismo”, já para não falar do cretinismo estalinista.
[2] Observo um jogador de ténis e vejo que seus
golpes não são suficientemente seguros, que não constrói suficientemente o seu
jogo, que não percebe ou não sabe responder à estratégia do seu adversário com
outra estratégia e que se contenta em devolver a bola como pode. A minha
“Consciência” não é justa nem falsa, é abstrata, despojada de eficácia, e
determinada pela minha situação de espectador. A “Consciência” que tem o
jogador é de um tipo diferente; inclui, entre outras coisas, a percepção
imediata da fadiga, das capacidades fisiológicas, sensoriais, de percepção e de
reflexo, etc. A sua consciência é um momento do seu jogo, indissociável do seu
jogo. A minha é inútil para o seu jogo. Se depois da partida, lhe comunico as
minhas conclusões, estas serão totalmente inúteis para ele, exceto se se
incluir na minha análise uma compreensão interna das determinações concretas do
jogo do jogador, por exemplo, pela minha experiência, mas então a minha
consciência já não estará simplesmente elaborada desde o exterior, e está
parcialmente “do interior” e apenas é útil a este título, não é admissível
senão nesta qualidade, e provavelmente não contribuirá com nada de novo que o
jogador não saiba já, embora de outra maneira. No máximo, a nossa discussão
desembocará, não em levar-lhe a consciência, mas na elaboração de uma linguagem
pela qual as nossas experiências se tornam comunicáveis. É mais simpático, mas
já não tenho nenhum privilégio.
[3] “História das doutrinas económicas” (Ed. Costes.
Lib. “La Vieille Taupe”).
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